A ancestralidade negra como caminho para o autocuidado
As mulheres negras foram as mais afetadas pela crise deflagrada pela pandemia de covid-19. No aquilombamento da Rede de Mulheres Negras do Ceará, foram buscar forças e afeto
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Rede de Mulheres Negras do Ceará
Nossos passos vêm de longe. Mulheres negras lutam nesse país há muitos séculos. No Ceará, tivemos e temos pretas inspiradoras e referências em várias áreas da luta antirracista. Coletivos e instituições de mulheres que entendem que a luta coletiva é necessária e inadiável.
A Rede de Mulheres Negras do Ceará une mulheres pretas de todo o estado, com trajetórias diversas e que, mesmo antes de se encontrar na Rede, já se cruzavam pela vida, pelas lutas, pelos projetos e ações. Mulheres que seguem dispostas a caminhar pelos princípios da Ancestralidade, Bem Viver, Pluralidade, Respeito as Diferenças, Corporeidade, Justiça e Autogestão e organização em Rede.
Oficialmente, a Rede surgiu em 2019. Desde então, temos por hábito organizar reuniões para leitura de poesias, para trocar impressões e partilhar algumas técnicas entre nós.
Com a chegada da pandemia de covid-19, essas dinâmicas foram afetadas. As mulheres negras foram as mais impactadas pela crise social e sanitária, sofrendo com desemprego, fome, sobrecarga, violência doméstica, feminicídio.
Desde que nasceu, a Rede tem o bem viver como um princípio orientador e como seu objetivo maior. Por isso, diante de tantas violações e crises, as mulheres procuraram forças no aquilombamento proporcionado pela Rede.
Passos que vêm de longe
Antes de falar sobre a pandemia, convém contar como Rede nasceu. As movimentações para a criação da Rede de Mulheres Negras do Ceará ganharam forma em 2015, quando foi realizada a Marcha Nacional da Mulheres Negras em Brasilia. O evento despertou em nós a vontade de avançarmos na organização da luta antirracista que, há muitos séculos, é protagonizada por mulheres no estado. Com o chamado, em 2018, para o Encontro Nacional de Mulheres Negras, em Goiânia, se tornou imperativa a mobilização de mulheres negras para propiciar a participação de delegação cearense nesse importante encontro.
O Instituto Negra do Ceara, que já se organizava na cidade com a pauta das mulheres negras, fez um chamado para uma reunião ampliada, chamando mulheres negras, organizadas ou não nos movimentos de mulheres, e assim foi surgindo aquela semente de organização de mulheres negras cearenses.
Nosso primeiro passo foi buscar recursos financeiros para a viagem ao Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos, e tocamos a organização do evento cultural SEXTA PRETA, que era mais uma incidência política cultural em Fortaleza e que foi realizada duas vezes antes do encontro nacional.
A festa, aberta ao público na Praça da Gentilandia foi totalmente auto-organizada, com a colaboração de muitas de nós que doamos roupas usadas para um bazar e com doações de comidas e algum dinheiro para a bebida. A festa logo ficou conhecida, virando um local de encontro do povo preto na cidade.
Após o Encontro, as mulheres sentiram que aquela potência e união de esforços em prol de um objetivo comum era muito importante e que a auto-organização deveria seguir. Por isso, em julho de 2019, realizamos o lançamento oficial da Rede de Mulheres Negras do Ceara, em Fortaleza e na Região do Cariri.
Autonomia do Cuidado
Atualmente estamos na 9ª edição da Sexta Preta, que durante a crise sanitária do país, foi realizada de forma virtual e ganhou o Prêmio SECULT Dendicasa para ampliar a cultura mesmo em tempos de pandemia.
Durante o último ano e meio, não foi só a Sexta Preta que precisou mudar. Nas nossas reuniões, tivemos de lançar um olhar atento para o autocuidado. Mas o autocuidado, entendido por nós, como autonomia do cuidado, que não podemos delegar a ninguém a não ser nós mesmas.
Partilhamos os conhecimentos de ervas que ajudam a lidar com os vários sentimentos e dores que nos afligiam como o alecrim, o capim santo e a arruda. Os chás que podiam nos tirar de momentos de tristeza ou de ansiedade. Em outros momentos, fizemos abertura das reuniões com música e dançamos juntas.
Uma outra prática muito importante foi a redefinição das formas como acolhemos novas pretas na Rede. Fazemos um processo cuidadoso para que as mulheres se sintam acolhidas e durante um mês as reuniões ocorrem semanalmente com poesia, música, informações sobre a rede, leitura de textos sobre a questão racial. O foco principal é mostrar que a Rede não é só de luta e resistência, mas uma Rede de Afeto e Resistência. Que, para se sentir bem e contribuir, precisamos nos acolher, acolher nossas dores e superar juntas de mãos dadas.
Quero trazer da minha perspectiva que o bem viver na rede eu entendo e sinto como a troca, como o afeto em cada gesto, com o saber que temos muitas de nós que podemos contar, que nosso fazer político é com carinho e afeto, que as ervas, os chás, os óleos e rezas podem curar e mudar seu humor. Mas que uma troca de mensagens, uma ligação, uma visita num dia, um bolo num aniversario pra outra, podem mudar a forma como enxergamos o viver. O bem viver está em nós e podemos seguir na busca dele.
Conseguimos ainda nesse ano de 2021 fazer ações de solidariedade beneficiando 42 mulheres com cestas básicas para amenizar sua situação de vulnerabilidade, através do projeto Enfrentando o Racismo aprovado para apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
O racismo estrutural nos fere e mata todos os dias um pouco, com as mortes, o genocídio do povo preto que dura séculos, sem qualquer mudança. Mas as mulheres negras desde sempre souberam resistir e sobreviver a muitas feridas. Estamos aqui hoje como resultado da luta de muitas ancestrais. Algumas ainda vivem entre nós e nos presenteiam com sua sabedoria e carinho. Então, reivindicamos o bem viver das mulheres negras, para que o mundo seja melhor, só com as mulheres negras que seguram esse país vivendo bem e livres.
Como diz Angela Davis:
"Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta"
As ativistas da Rede de Mulheres Negras do Ceará durante encontro pandêmico (Foto: arquivo pessoal)
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