Aborto legal: equipes insuficientes e discurso antidireitos são obstáculos
Rafael Ciscati
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Todos os meses, desde que a pandemia de covid-19 começou, a obstetra Helena Paro participa de uma reunião online com médicos e enfermeios espraiados por 43 diferentes cidades do país. O objetivo da conversa é trocar experiências e discutir casos delicados. Professora da Universidade Federal de Uberlândia, Helena coordena o Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Violência Sexual (Nuavidas) do hospital das Clínicas da universidade mineira. Seus colegas de reunião representam outros 43 serviços de aborto legal: quase a totalidade, estimam, das equipes que efetivamente atendem no Brasil atualmente. Trata-se de um número pequeno, considerado insuficiente para responder a uma demanda que, de acordo com as experiências narradas por esses profissionais, deu um salto nos meses de confinamento forçado. “Há mais de 5 mil municípios no Brasil. O número atual de serviços fica muito aquém das nossas necessidades”, afirma Helena.
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O acesso ao aborto em caso de violência sexual ou risco de morte é um direito previsto em lei desde 1940. Por quase meio século, não passou de letra morta — apesar da legislação, o primeiro serviço autorizado a realizar o procedimento só foi criado em 1989, em São Paulo. De lá para cá, o número de equipes aumentou a passos lentos. No começo de 2020, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Saúde (CNES), elas chegaram a 98. São equipes multidisciplinares, que atuam em hospitais públicos. “Mas nem todos os serviços cadastrados prestam atendimento efetivamente”, diz Helena. “E muitos deixaram de trabalhar durante a pandemia. Hoje, a gente identifica 44 equipes que fazem parte desse grupo de discussão. O número pode ser maior, mas dificilmente chega a 50”.
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O cenário é descrito em detalhes em um artigo recém-publicado por Helena e pelo médico obstetra Cristião Rosas. Ambos são membros, no Brasil, da Rede de Médicos pelo Direito de Decidir — uma associação internacional que defende a autonomia decisória das pacientes vítimas de violência sexual. O artigo é resultado de uma parceria entre a Sexuality Policy Watch e a ONG feminista brasileira Cfemea. Nele, os pesquisadores passam em revista os quase 32 anos que se seguiram à criação do primeiro serviço de aborto legal no Brasil. É uma história contada em três atos. No primeiro, há apoio do estado brasileiro para a expansão dos serviços. O segundo, a partir de 2006, narra uma história de estagnação, quando poucas equipes foram criadas. O terceiro, que cobre o período de 2016 até hoje, é marcado pelo que os pesquisadores chamaram de “ativismo antidireitos”: quando membros do próprio governo passam a adotar medidas e discursos destinados a dificultar o acesso à interrupção legal da gravidez. “Hoje, há profissionais que temem não ter segurança jurídica para realizar o próprio trabalho. O clima é de vigilância constante”, diz Helena. O resultado é a morte de mulheres e meninas forçadas a realizar abortos em condições inseguras.
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O acesso ao aborto é um tópico delicado desde sempre, mas o Brasil já ocupou posição de vanguarda nessa discussão. “Lá em 1989, nós fomos pioneiros na América Latina ao criar um serviço de interrupção legal da gravidez”, afirma Cristião. “Na época, o aborto só era descriminalizado em Cuba”. A equipe era liderada por ele, e funcionava no hospital do Jabaquara, na zona sul da capital paulista. Sua criação foi acompanhada por protestos de médicos e por discussões acaloradas na imprensa. Mas o serviço prosperou — e a experiência serviu de referência para criação de equipes semelhantes no restante do país e na América Latina.
O campo progrediu até 2006, quando o número de serviços cadastrados chegou a 69. Embora a ampliação fosse lenta, havia apoio governamental para a realização de debates e atividades formativas. Periodicamente, os profissionais que tabalhavam em serviços de aborto legal se encontravam em fóruns nacionais, promovidos com o patrocínio do ministério da Saúde.
O último desses encontros aconteceu em 2013. A partir dali, os pesquisadores identificam sinais de declínio. “Aos poucos, o governo federal se ausentou dessa discussão”, conta Cristião. No mesmo período, lembra ele, algo no debate público pareceu mudar, antecipando uma guinada conservadora. “Na transição para o segundo governo Dilma, cresceu a pressão de grupos retrógrados. Dilma assinou uma carta se comprometendo a não ampliar as previsões legais para a interrupção da gravidez”, conta. Em 2016, o número de estabelecimentos autorizados a realizar abortos cadastrados no CNES já era menor que 10 anos antes.
A expansão e o bom funcionamento dos serviços esbarrou ainda em outro elemento fundamental: a formação dos profissionais, que pouco se modernizou. Nas escolas de medicina pelo país , afirmam os autores , aborto induzido é um tema tabu, e raramente discutido à luz da ciência. A lacuna cria situações que contrariam a própria legislação. Hoje, um profisisonal pode se recusar a realizar um aborto ao alegar “objeção de consciência”: naquelas situações em que o procedimento fere suas crenças religiosas, por exemplo. Nessas ocasiões, é obrigado a encaminhar a mulher a outro serviço onde ela possa receber os cuidados necessários. Segundo os pesquisadores, no entanto, é comum médicos se recusem a realizar o aborto por desconfiar da palavra da mulher que relata ser vítima de violência. Os casos, afirma o trabalho, se aproximam muito mais de negativas de atendimento que de objeções de consciência. “Isso é reflexo de uma formação bioética falha”, afirma Helena.
Há ainda outros equívocos. Uma pesquisa de 2012 constatou que mais de 80% dos ginecologistas e obstetras associados à Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) acreditavam na necessidade de exigir boletins de ocorrência para autorizar a realização de um aborto. Essa cobrança não existe.
E a maioria dos médicos acredita, ainda, que o procedimento só possa ser realizado, com segurança, em gestações de até 22 semanas. O número consta em uma recomendação do ministério da Saúde de 2012. Não se baseia em evidências científicas nem tem peso de lei: e dificulta o acesso de mulheres ao procedimento. “As mulheres mais pobres, que nem sempre têm acesso à informação, procuram atendimento médico mais tardiamente”, conta Helena. O mesmo, diz ela, acontece com as crianças violentadas em casa, e que demoram a reconhecer os sinais da gravidez. Pela legislação brasileira, não há limite de tempo para interromper uma gestação decorrente de um estupro.
Em 2020, uma portaria editada pelo ministério da Saúde adicionou ainda uma nova camada de obstáculos. O texto tornou obrigatório que profissionais que atenderem mulheres vítimas de violência sexual denunciem o caso à polícia. Há o temor de que, diante dessa obrigação, mulheres deixem de procurar ajuda. A portaria também orienta os profissionais a exibir imagens do feto à paciente. A cobrança foi interpretada, por ativistas e médicos, como uma forma de tortura psicológica.
Na avaliação dos pesquisadores, o atual governo demonstra uma espécie de “aversão aos direitos sexuais e reprodutivos”. A tendência foi manifestada em posicionamentos internacionais: em junho do ano passado, o Brasil se absteve de votar uma resolução da ONU destinada a garantir a saúde sexual e reprodutiva de pessoas afetadas por crises humanitárias. “No mês seguinte, o país se aproximou de países islâmicos no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em uma tentativa de extrair do texto de uma resolução a referência ao “direito à saúde sexual e reprodutiva”, diz o trabalho.
Ainda em junho do ano passado, uma recomendação da área de saúde da mulher do ministério da Saúde causou protestos entre apoiadores do governo. No parecer 16/2020, os técnicos recomendavam a estados e municípios manter a operação de serviços de saúde tidos como essenciais, como de acompanhamento de pré-natal e serviços de aborto previsto em lei. “Começou uma gritaria, em que se afirmou que alguém no ministério da Saúde pretendia legalizar o abroto”, lembra Cristião. Em resposta, o governo exonerou a coordenadora de saúde da mulher do ministério.
Hoje, apesar de amparados pela lei, profissionais que atuam nesses serviços temem represálias. Ao mesmo tempo, buscam alternativas para garantir — e ampliar — o atendimento a mulheres e meninas. Em Uberlândia, a equipe de Helena conduziu os primeiros casos de aborto assistido por telemedicina no Brasil. Por esse modelo, a mulher retira os medicamentos necessários para o aborto medicamentoso no hospital, é é acompanhada pela equipe médica pelo celular 24 horas por dia. Dos 6 procedimentos realizados desde agosto do ano passado em Uberlândia, 5 seguiram essa dinâmica, com a paciente acompanhada em casa. “Hoje, só internamos os casos que realmente exigem internação”, conta a médica. O procedimento é seguro e, na avaliação da equipe, garante maior conforto às pacientes. “Nós vivemos uma crise severa, mas não podemos somente resistir para tentar barrar retrocessos”, afirma Helena. “Precisamos trabalhar para avançar”.
Para saber mais
Leia o artigo: Serviços de atenção ao abroto previsto em lei: desafios e agenda no Brasil
Acesse: o Mapa do Aborto Legal, da Artigo 19
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