As filhas de Yayá: um quilombo no ES resgata sua história usando o audiovisual
Pressionada pela expansão do agronegócio, comunidade quilombola de Angelim II produz vídeos e podcasts para preservar memórias e tradições
Maria Edhuarda Gonzaga *
6 min
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Foi durante a década de 1960 que as matas e brejos do Sapê do Norte começaram a se transformar em um deserto verde. Situada no extremo norte do Espírito Santo, a região já abrigou mais de 12 mil famílias quilombolas distribuídas entre as cidades de Conceição da Barra e São Mateus. Essa realidade se transformou com a invasão dos monocultivos de eucalipto e cana-de-açúcar. Quem observou a transformação conta que rios e lençóis freáticos foram poluídos pelo agrotóxico usado nas lavouras de cana. Já as florestas de eucalipto – árvore exótica, que cresce rapidamente, consumindo muita água – contribuíram para secar nascentes. Apesar de viver ali há gerações, os quilombolas não tinham o título de posse das terras que ocupavam. Na disputa com fazendeiros e empresários, perderam. Com sua subsistência comprometida, 90% das famílias quilombolas migraram.
Luzia dos Santos foi uma das poucas matriarcas a permanecer no território. Uma das mulheres mais velhas da comunidade quilombola de Angelim II , viu as terras onde viveu e onde viveram seus ancestrais, reduzidas a um único alqueire (o equivalente a dois campos de futebol).
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Foi ali que ela criou seus dezoito filhos, oito biológicos e dez adotivos. Luzia era chamada pelos mais novos de Yayá, um sinal de respeito e obediência dentro da cultura quilombola. Ainda hoje, suas filhas falam de suas rezas, que curavam enfermidades. E sua neta, Flávia Santos, lembra dos relatos da avó sobre o momento em que teve contato direto com a invasão das grandes companhias. “Ela contava que, no dia em que chegaram os correntões [trator de esteira], ela catou todos os filhos dela e saiu correndo. Ela não conhecia aquele maquinário, aquela destruição.” Com tratores e correntes, a empresa produtora de papel e celulose derrubou as árvores nativas da região, para plantar eucalipto no lugar. }
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Percebendo seus territórios minguarem ao passo que a extensão do monocultivo aumentava, Luzia entrou no Movimento Social Quilombola, na expectativa da titular as terras onde viveu desde o nascimento. Morreu aos 84 anos de câncer de estômago, sem realizar o sonho de retomar a antiga realidade da comida em abundância e dos brejos cheios de cipó.
As histórias de Luzia, ou Yayá, estão entre as memórias preservadas pela Biblioteca Quilombola de Angelim II. O projeto faz parte de um conjunto de iniciativas mantidas pela comunidade quilombola que, diante do histórico de expropriações, resiste com ações de restauração territorial e memória. Projetos que se encarregam de preservar o espírito contido nos saberes de um povo que acumula anos de direitos sequestrados.
De início, a Biblioteca Quilombola de Angelim II funcionava em uma pequena casa, de livre acesso e com livros disponíveis para a população negra e rural. A ideia era ajudar a formar os mais jovens através das memórias das lideranças do quilombo, e compartilhar saberes ancestrais. Com o tempo, ela foi expandida. Agora, as memórias estão disponíveis no mundo digital.
Presentes no YouTube e nas plataformas de streaming, o canal Raízes do Sapê e o podcast Vozes do Sapê apresentam a história do Sapê do Norte através do olhar das anciãs do quilombo de Angelim II. Já foram publicados dois vídeos e um episódio do podcast. Todos contam com a presença de duas das filhas de Yayá Luzia, Dete e Edite. O projeto planeja entrevistar outras três filhas, para compartilhar suas histórias e percepções. Todos os episódios são dirigidos pela neta de Luzia, Flávia dos Santos. A trilha sonora inclui músicas como “O canto dos escravos”, de Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Doca.
Nos vídeos e no podcast, o território se revela como uma espécie de personagem central para a vida dessas mulheres e suas famílias. O monocultivo permanece dificultando as possibilidades de subsistência das comunidades quilombolas de Sapê do Norte, que abriga a maior parte dos quilombos do estado. Ao recuperar as memórias de antigos moradores, a produção torna pública a situação de escassez e as adversidades que o agronegócio trouxe para a região.
O monocultivo do eucalipto chegou na região nos anos 1960, com a instalação da Fibria, uma fabricante de papel e celulose. Hoje, os cultivos são propriedade da Suzano. Nas entrevistas, Marlete e Edite – as duas filhas de Yaya – lembram como, até a chegada das plantações de eucalipto, os quilombos do Sapê do Norte tinham comida farta. Grande parte do alimento consumido era produzido pelos próprios integrantes da comunidade. Diversas espécies de peixes viviam nos igarapés e o cipó brotava em abundância nos brejos. O que não comiam, era vendido ou trocado. O cipó era usado para produzir vassouras e outros itens que também serviam de renda extra para a comunidade. “O eucalipto acabou com a nossa terra, acabou com nossa comunidade. Não tem cem metros de distância da nossa terra para o eucalipto”, detalha Marlete com indignação.
A chegada das empresas deu início a um conflito por terras que se estende até hoje. Estimativas da Comissão Quilombola Sapê do Norte mostram que, das 12 mil famílias quilombolas que viviam na região, restaram apenas 1,2 mil. Em todo o Espírito Santo, somente três territórios quilombolas foram parcialmente titulados. Apenas um deles encontra-se em Sapê do Norte, o quilombo São Cristóvão.
Frente ao extermínio contínuo dos povos tradicionais, o quilombo Angelim II, berço de Yayá Luzia e de tantas outras histórias ancestrais, enxerga na retomada das memórias de sua comunidade um ato de resistência. Registrar em áudio e vídeo a história de Luzia através de suas descendentes diretas se mostra muito mais do que um simples ato de recordação. Segundo Flávia, é também uma ação de enfrentamento às violações e de manutenção da memória. Na tentativa de manter viva a cultura que, assim como a floresta, encontra em risco de extinção, os materiais audiovisuais foram a maneira encontrada para perpetuar as tradições e reafirmar suas vidas. “Temos que estar a todo momento pontuando a nossa existência”, declara.
Relembrar Yayá Luzia através de cinco mulheres da sua linhagem é, além do reconhecimento da permanência de sua marca, um resgate da ancestralidade do quilombo como povo pertencente àquele território. “Ela está viva no nosso meio, vendo nosso esforço para estar sempre lembrando dela”, afirma Marlete.
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
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