Como a ditadura militar criou um campo de concentração para indígenas em MG
Rafael Ciscati
13 min
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Foi no final dos anos 1960 que Djanira Krenak presenciou uma cena cuja memória carregaria consigo por toda a vida. Anciã do povo Krenak, Djanira e a família viviam nas imediações do Posto Indígena Guido Marliére,na cidade de Resplendor, Minas Gerais. Criado pelo governo brasileiro no início do século XX, o Guido Marliere existia – segundo a visão da época – para administrar a presença indígena na região. O território, às margens do Rio Doce, era tradicionalmente ocupado pelos Krenak. Durante a Ditadura Militar, no entanto, a recém-criada Fundação Nacional do Índio (Funai) entregou o comando da área a um policial militar, o Capitão Manoel dos Santos Pinheiro.
Pinheiro cumpria seu papel com violência. Em 1969, a Funai mandou construir no Posto Indígena um presídio: o Reformatório Krenak. Para lá, passou a enviar indígenas acusados de causar problemas. Calcula-se que pessoas de 23 etnias, provenientes de todo o Brasil, foram confinados no Reformatório. Eram presas sem acusação formal nem direito de defesa. Os Krenak, antigos moradores do Posto, viviam também sob a ameaça dessa penitenciária.
O indígena Krenak que quisesse deixar o Posto Guido Marliére precisava pedir permissão às autoridades. Quem desrespeitasse as ordens apanhava e era preso no reformatório. O mesmo acontecia a quem bebesse, fizesse “arruaça”, tivesse relações homossexuais ou insistisse em falar o idioma Krenak em lugar do português. A detenção não tinha prazo definido: durava o tempo que os policiais julgassem adequado. Os presos sofriam castigos físicos: segundo relatos da época, eram amarrados em um tronco e açoitados. Presos em celas individuais, passavam dias sem comer.
Mesmo as crianças eram punidas caso desrespeitassem as ordens de Pinheiro e seus homens. Djanira lembra que, certo dia, “um dos meninos não quis estudar. Preferiu pescar”. Um dos policiais que patrulhava o posto descobriu a traquinagem. Para punir a criança, montou num cavalo e amarrou o menino, que foi obrigado a correr à frente da montaria. Se caísse ou não acompanhasse o passo, a criança seria arrastada . “A gente teve pena, mas não podia fazer nada. Não podia socorrer a criança. Ia preso ou morto”.
Djanira Krenak fala à Comissão da Anistia (Foto:Reprodução)
Djanira narrou suas memórias durante sessão da Comissão da Anistia em Brasília na última terça-feira (2). Vinculada ao ministério dos Direitos Humanos, a Comissão tem a missão de reconhecer e reparar os crimes praticados pela ditadura militar brasileira. Na ocasião, o colegiado analisou as violações praticadas contra dois povos indígenas: os Krenak, de Djanira; e os Guarani-Kaiowá, que foram perseguidos e expulsos de suas terras durante o regime de exceção. Os dois grupos cobram do Estado brasileiro medidas coletivas de reparação. Entre as demandas, pedem a demarcação de seus territórios tradicionais.
A sessão foi considerada um marco histórico para a Comissão: até 2023, o colegiado só tratava de reparações individuais, que podem incluir indenizações em dinheiro. No ano passado, o regimento interno da instituição foi alterado, de modo a autorizar reparações coletivas. Elas, no entanto, não podem envolver pagamentos. “Debatemos muito e entendemos que, para os povos indígenas, o que faz sentido é a reparação coletiva”, disse a presidente da Comissão, Enéa de Stutz. “Sabemos que a perseguição aos povos indígenas dura mais de 500 anos. Não vamos reparar 500 anos de perseguição. Mas é possível trazer algum tipo de conforto, reconhecimento e homenagem”.
Ajoelhada sobre as cadeiras do auditório, Enéa pediu perdão aos Guarani-Kaiowá e aos Krenak em nome do Estado brasileiro. O colegiado também encaminhou recomendações à União. Entre elas, que se reconheça o direito originário desses povos aos seus territórios.
O gesto foi bem recebido, mas as lideranças indígenas cobram medidas concretas. “Esse pedido [ de desculpas] não pode se resumir a uma dimensão simbólica, para que não se repita o passado” disse Giovani Krenak durante a sessão. “Não podemos abraçar uma barreira legal dizendo que na reparação coletiva não pode ser garantida uma dimensão econômica. Não podemos nos ancorar num argumento legalista. A legislação, com seu empecilho, é uma continuação das violações contra os povos indígenas”.
A sessão da última terça-feira foi mais um capítulo de uma longa luta que os Krenak travam com o Estado brasileiro em busca de reparação.
As violências vividas por esse povo à sombra do Reformatório Krenak continuaram até 1972. Naquele ano, a Funai fez um acordo com o governo de Minas Gerais e transferiu os indígenas para a cidade de Carmésia, no interior do estado. Para o governo, a transferência era vantajosa: as terras dos Krenak, ao redor do Reformatório, eram cobiçadas pelo agronegócio. Na Fazenda Guarani, para onde os indígenas foram levados à força, as detenções arbitrárias e os castigos físicos continuaram. Expulsos de seu território tradicional, os Krenak sofreram. “Nosso povo foi morto e torturado por causa de terra. Toda a vida, o indígena é morto e sofre por causa da terra”, disse Djanira.
Em 2021, a União, o Estado de Minas Gerais e a Funai foram condenados pela Justiça mineira a reparar os danos que a ditadura causou aos indígenas. No ano passado, a Funai reconheceu a Terra Indígena Sete Salões, onde ficava o reformatório, como um território tradicional dos Krenak. Mas a demarcação ainda não avançou. Nesse meio tempo, os Krenak continuam a contar sua história – ainda que isso lhes seja doloroso, conforme disse Djanira à Comissão. Ao fazê-lo, forçam o Estado brasileiro a confrontar um crime impossível de expiar.
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A perseguição aos Krenak
Quando o posto indígena Guido Marliére – onde seria construído o reformatório Krenak – foi criado, no início do século XX, vigorava a ideia de que os povos indígenas brasileiros estavam destinados a desaparecer. Para os governos de então, os indígenas deveriam ser “civilizados” e integrados à sociedade nacional. Essa aculturação do indígena era parte da missão do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – o órgão federal que precedeu a Funai.
O posto indígena surgiu quando, em 1920, o governo federal doou ao SPI uma área de 4 mil hectares às margens do Rio Doce. Ali, o órgão pretendia fixar os Krenak. No raciocínio dos servidores do SPI, para se adequar à sociedade nacional, era recomendável que o indígena se estabelecesse num dado território, e fosse convertido em agricultor. Nessa mesma época, o SPI começou a arrendar parte do território dos Krenak a produtores rurais. Os posseiros pagavam uma taxa ao órgão federal, de modo a ocupar as terras e cultivá-las. A intenção era que os colonos servissem de “exemplo” aos indígenas.
Quem contou essa história em detalhes foi o antropólogo João Gabriel Silveira Correa. Em sua dissertação de mestrado, apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no ano 2000, Correa recorre a documentos oficiais para traçar a história de como o governo brasileiro, ao longo de todo o século XX, buscou controlar a trajetória dos Krenak.
Correa afirma que a missão assumida pelo SPI, de controlar os indígenas, foi também herdada pelo órgão que o sucedeu, a Funai. E que a construção do Reformatório Krenak, durante a Ditadura Militar, se encaixava na filosofia adotada, até ali, por essas instituições: seu desejo era o de guiar os indígenas rumo à assimilação pela sociedade não–indígena. “Junto com a tarefa de proteger e assistir os índios, a ação tutelar inclui também a dimensão do controle, devendo o tutor guiá-los para que se transformem e se integrem à sua sociedade”, escreveu o antropólogo. (pg180).
Foi seguindo esse espírito que, em 1969, a Funai criou a Guarda Rural Indígena (Grin). O grupo era formado por indígenas de diferentes etnias, que recebiam treinamento militar e eram instruídos a fazer cumprir as regras estritas que governavam a vida no Guido Marliere.
Na sua dissertação de mestrado, Correa conta que a criação da Grin foi festejada e amplamente divulgada pelo governo. A cerimônia de formação dos primeiros cadetes incluiu uma parada pública pelas ruas de Belo Horizonte. Ao evento, compareceram o governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, e o ministro do Interior, o general José Costa Cavalcanti. A solenidade foi registrada em um filme nunca lançado – Araras, do cineasta Jesco von Puttmaker. Trechos dele foram exibidos na sessão da Comissão da Verdade da última terça-feira. Mostram cadetes indígenas, de cabelos compridos, marchando pelas ruas em fila. Perto do fim da parada, o filme mostra também um indígena sendo carregado num pau-de-arara – um método de tortura que consistia em amarrar as pernas e braços das pessoas em um feiche de madeira e ergue-lo. O sofrimento do indígena era parte do espetáculo.
O dia a dia em um campo de concentração indígena
Ao contrário do que se fez com as Grin, a criação do Reformatório Krenak foi mantida em relativo segredo pela Funai. Correa conta que, ao pesquisar o tema, deparou com pastas da instituição carimbadas como “confidenciais”.
Na cidade ao redor, no entanto, o presídio indígena não passou despercebido. Por anos, o SPI estimulara a presença de agricultores brancos no território Krenak. No final dos anos 1960, a Funai mudou de postura: passou a cobrar taxas cada vez maiores pelos arrendamentos, na esperança de afastar os agricultores da região. Esses, por sua vez, grilavam terras na esperança de, eventualmente, regularizar a posse da área. Por isso, correu o boato de que a instituição correcional serviria para punir posseiros.
Registros da época mostram que o reformatório Krenak era formado por dois grandes prédios. No maior, havia farmácia, enfermaria, celas individuais e coletivas. Havia também dois espaços diminutos, que serviam como cubículos para detenção. O segundo prédio abrigava um alojamento para guardas e a sede de administração.
Para lá, o governo enviava indígenas que precisavam ser “reeducados” – porque tinham se envolvido em brigas, cometido delitos ou, simplesmente, contrariado as vontades de alguma autoridade. As razões das detenções nunca eram muito bem explicadas.
Essa vagueza foi descrita já em 1974, em uma denúncia enviada ao Tribual Russel II. O Tribunal foi criado por iniciativa dos filósofos Bertrant Russell e Jean-Paul Sartre . Na sua primeira encarnação, a Corte pretendia julgar os crimes praticados pelos EUA durante a Guerra do Vietnã. A segunda edição aconteceu em Roma, e focou em denunciar a repressão dos regimes autoritários na América Latina.
A denúncia à Corte descreve o Reformatório Krenak como um “campo de concentração”, e relata o caso de um indígena que foi aprisionado depois de ir à sede da Funai, em Brasília, apresentar reivindicações ao presidente da instituição. O homem se desentendeu com um servidor. Ficou preso por três anos.
O antropólogo Correa conta que nas fichas individuais dos indígenas, eles eram classificados segundo adjetivos: boa conduta, boa amizade, civilizado, trabalhador e esforçado, obediente, pederasta ativo e passivo, revoltado, corrompido, ladrão. O indígena que apresentasse bom comportamento durante a detenção poderia ser libertado. Quem, ao contrário, somasse adjetivos negativos, continuava preso. “A aprovação ou reprovação dos comportamentos pelos funcionários do reformatório e da AJMB se ligavam diretamente ao perfil do novo índio que se pretendia fabricar dentro dessa instituição, e das virtudes das quais deveriam ser dotados”, escreveu Correa.
Esse sistema valia para os indígenas de diferentes etnias que eram enviados, de todo o Brasil, para o reformatório. Valia, também, para toda a população de indígenas Krenak que morava na região do Posto Guido Maliére. E era aplicado, inclusive, aos homens da Guarda Rural Indígena – que poderiam ser presos e punidos pelos seus pares, caso violassem alguma regra.
Correa listou os motivos que levavam à detenção (Foto: Reprodução)
Além das detenções, os indígenas eram submetidos a trabalhos forçados e castigos físicos. No relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, Bonifácio Duarte, indígena do Povo Guarani-Kaiowá, relembrou o tempo que passou preso no Reformatório. Segundo seu depoimento, o indígena que seria castigado era escolhido por sorteio: “Amarravam a gente no tronco, muito apertado. Quando eu caia no sorteio para apanhar, passava uma erva no corpo, pra aguentar mais. Tinha outros que eles amarravam com corda de cabeça para baixo. A gente acordava e via aquela pessoa morta, que não aguentava ficar amarrada daquele jeito”.
A arbitrariedade das prisões impressionou, inclusive, o encarregado da Funai que sucedeu o capitão Pinheiro na gestão do presídio indígena. João Geraldo Itatuim Ruas assumiu a função em 1973. Àquela altura, os indígenas do Reformatório Krenak já haviam sido transferidos para a Fazenda Guarani. Os relatos da época dão conta de que, na nova localidade, o cotidiano dos prisioneiros mudou pouco. Ruas, por sua vez, era um gestor diferente: ganhou fama como o primeiro servidor da Funai de origem indígena. Ficou à frente da divisão da Funai que, entre outras obrigações, tratava da Fazenda Guarani. E se surpreendeu com a falta de documentação dos indígenas detidos: segundo levantamento seu, 80% dos prisioneiros não tinham nenhum documento. Tampouco havia registros das causas da detenção.
Essa rotina de desmandos seguiria até o final dos anos 1970, quando a Fazenda Guarani foi desativada. Mais de quatro décadas depois, a memória dessas perseguições permanece viva entre os Krenak. Vive também a certeza de que é preciso retomar as terras que lhes foram tiradas. “Doi muito falar disso. Porque a gente perdeu parentes, perdeu nosso rio, perdeu tudo”, disse Djanira Krenak à Comissão da Anistia, lembrando como, bem depois do fim da Ditadura Militar, o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, poluiu o Rio Doce. Foi um golpe grave para os Krenak, que consideram o rio uma entidade sagrada. “Por isso, pedimos força a vocês, que podem nos ajudar a recuperar essa terra. Vamos lutar. O direito é nosso”.
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