Como criar polícias melhores
As polícias brasileiras estão entre as que mais matam — e as que mais morrem — no mundo. Denúncias recentes de abusos e execuções apontam para a necessidade de repensar sua atuação
Rafael Ciscati
16 min
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Em 2001, o antropólogo Luiz Eduardo Soares acabara de voltar ao Brasil, depois de uma temporada no exterior, quando decidiu se estabelecer em Porto Alegre (RS). Sua saída do país, no ano anterior, não fora exatamente a realização de um desejo: então coordenador de Segurança e Cidadania do governo do Rio de Janeiro, Soares denunciara ao Ministério Público a existência de uma “banda podre” na polícia militar fluminense – um grupo de policiais corruptos que conseguira chegar ao topo da instituição. “Depois daquilo, eu não tinha condições de continuar no Rio de Janeiro”, lembra ele.
A ida de Soares à Porto Alegre tinha relação com sua experiência prévia em segurança pública. À convite do então prefeito Tarso Genro (PT- RS), Soares desenhou um programa piloto destinado a repensar as políticas de segurança para uma das regiões mais violentas da capital gaúcha, o bairro da Restinga. Na época, cerca de 150 mil pessoas moravam na região. Os índices de assalto e homicídio eram altos — e a confiança da população na polícia, diz Soares, baixíssima. “Eu estabeleci que a nossa primeira tarefa era reaproximar a população das polícias”, diz o antropólogo.
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A proposta de Soares surpreendeu os policiais: “Disse a eles que eu ia assumir o papel de um ouvidor. Ia me encarregar de receber as queixas da população e repassá-las ao comando da brigada militar local. Com a condição de que fossem investigadas”, conta. “Eles ficaram céticos. Mas aquele era o Rio Grande do Sul em 2001 — não o Brasil em 2020”. A proposta foi aceita. “Até porque, ninguém tinha uma ideia melhor”.
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A tarefa, naquele início de século, não era trivial. Logo, as ligações anônimas começaram a pipocar, a qualquer hora do dia e da noite. Soares diz que não se incomodava com as queixas em horários inoportunos: “Eu tinha trabalhado por mais de um ano no Rio de Janeiro. Estava acostumado a acordar com problemas estourando no meio da noite”, conta, rindo. Num tempo em que os celulares ainda eram poucos, a maioria das denúncias era feita a partir de orelhões. Dispondo dessa linha direta, a população contava casos de policiais violentos, que intimidavam e agrediam pessoas. O trabalho resultou no afastamento de policiais violentos. Alguns deles, envolvidos no contrabando de armas e munição. O esforço contribuiu para estreitar vínculos entre a polícia e a população do bairro. “Em seis meses, o projeto como um todo fez zerar os homicídios na região”, comemora Soares. Teve vida curta: cerca de um ano depois, foi encerrado, quando Genro deixou a prefeitura para concorrer ao governo do estado.
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Um senhor de voz calma e tom professoral, Luiz Eduardo Soares é considerado, hoje, um dos maiores especialistas em segurança pública no Brasil. Em 2006, publicou Elite da Tropa, em coautoria com os ex-policiais Rodrigo Pimentel e André Batista — que, pouco depois daria origem ao filme de José Padilha, estrelado por Wagner Moura. Nos seu livro mais recente, Desmilitarizar — lançado pela Companhia das Letras no ano passado — discute formas de avançar em direção a políticas de segurança pública mais eficientes: que contemplem o respeito aos direitos humanos, combatam a letalidade policial e os altos índices de encarceramento.
A experiência em Porto Alegre é útil, diz ele, porque envolve alguns dos princípios dessa segurança pública mais inclusiva. “Nosso objetivo, então, era verificar se uma abordagem preventiva, intersetorial e com participação popular funcionaria”, conta Soares. Ele garante que sim.
O esforço de repensar as políticas de segurança pública — e as formas de atuação das polícias— parece especialmente urgente para o Brasil de 2020. Ao longo dos últimos anos, os índices de letalidade policial no Brasil dispararam. Em 2018, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 11 a cada 100 homicídios registrados no país foram cometidos por policiais. As polícias brasileiras firmaram posição num ranking desconfortável: estão entre as que mais matam em todo o mundo (foram mais de 6 mil mortes em 2018). Estão, também, entre as que mais morrem – 315 policiais assassinados naquele mesmo ano.
O quadro parece ter se agravado durante a pandemia do novo coronavírus. O distanciamento social afetou o número de crimes cometidos no estado de São Paulo — crimes contra o patrimônio, por exemplo, caíram. Mesmo assim, a atuação da PM paulista se tornou mais letal. Dados da Corregedoria da Polícia Militar, organizados pela Ponte, indicam que, de março a maio deste ano — em plena quarentena — a PM paulista matou 262 pessoas. No mesmo período do ano passado, foram registradas 223 mortes.
Nos últimos meses, sucederam-se, também, flagrantes de abuso policial. Num dos mais recentes, um soldado aparece pisando no pescoço de uma mulher negra, na periferia da cidade de São Paulo. A senhora sobreviveu, mas teve a clavícula e a perna fraturadas. A cena remeteu ao assassinato do americano George Floyd, ocorrido em finais de maio. Floyd morreu asfixiaado depois que o policial que o rendeu ajoelhou-se sobre seu pescoço por mais de oito minutos. “Eu não consigo respirar” disse, antes de morrer.
A morte de Floyd foi o estopim para uma série de protestos antirracistas, e contra a violência policial, que percorreram o mundo e chegaram ao Brasil. As cenas de abuso registradas por aqui nos últimos meses reforçam a questão: é possível repensar as polícias?
Ao longo da última semana, Brasil de Direitos conversou com especialistas em segurança pública, atuantes na academia e em movimentos sociais. Todos apontam que não existe uma fórmula pronta — ou uma solução célere — para o problema. Esses estudiosos e ativistas sugerem, no entanto, que qualquer que seja o caminho a seguir, a tarefa de repensar a atuação policial vai exigir maior participação popular nos rumos das políticas de segurança pública — e uma mudança radical na cultura política brasileira.
Por que a polícia mata?
As primeiras polícias surgiram no Brasil no começo do século XIX, com a vinda da corte portuguesa ao país. Eram encarregadas de manter a ordem pública e preservar o patrimônio. “As forças policiais surgiram com uma função clara — a de controlar a população negra então escravizada”, afirma Michel Chagas, especialista em gestão pública e membro do Instituto Steve Biko, de Salvador.
As polícias são organizadas à imagem do exército. Para Luiz Eduardo Soares, a estrutura é inadequada para uma instituição destinada a preservar direitos (foto: Mídia Ninja)
Ao longo do século XIX, as forças policiais acompanharam as mudanças numa sociedade que avançava, muito lentamente, do escravismo para a abolição: e que buscava, segundo os historiadores, manter mecanismos de controle sobre a população negra. A historiadora Wlamyra Albuquerque, da Universidade Federal da Bahia, costuma contar como, já em fins do século XIX (e pouco antes da abolição)o governo baiano redirecionou a atuação da polícia: sambas foram proibidos depois de determinada hora, a capoeira foi criminalizada, e coube à polícia fazer valer essas determinações. Segundo ela, era uma forma de limitar os espaços de ação da população negra livre do período: “Entendia-se que eles não estavam mais sob o controle de um senhor, mas deveriam passar para o controle do Estado”, afirma.
Essa evolução histórica importa porque, se as polícias brasileiras estão entre as que mais matam, são as pessoas negras, ainda hoje, as que mais morrem. “A sociedade brasileira é estruturada pelo racismo. E a atuação das polícias reflete essa estrutura” diz o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Em 2010, Cano e sua equipe conduziram uma pesquisa destinada a avaliar o viés racial na atuação das polícias cariocas. A pergunta que o orientava era: nas mesmas circunstâncias, as políticas matam mais pessoas negras que brancas? A investigação envolveu favelas do Rio de Janeiro e concluiu que sim: mesmo em contextos semelhantes (mesma renda, ou mesmo local de moradia), as chances de um homem negro ser morto pela polícia são 8% maiores que as de um homem branco.
Em 2018, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostraram que pessoas negras são as vítimas mais frequentes da força letal empregada pela polícia: representam 75,4% do total de mortos. Cano conta que surpreendeu os policiais ao apresentar esses resultados. “Eles diziam que as polícias não poderiam ser racistas, porque há muitos policiais negros”, lembra o professor.
Para o antropólogo Luis Eduardo Soares, esse perfil de vítima ajuda a explicar o quadro: “A letalidade policial é alta no Brasil porque são as pessoas negras as que mais morrem” afirma. “E o Brasil se acostumou à vitimização de pessoas negras e pobres”, provoca. Mas ele adiciona mais um ingrediente a esse caldo. Em Desmilitarizar, seu novo livro, Soares argumenta que as polícias brasileiras são orientadas por uma lógica de trabalho belicista, que privilegia o confronto à investigação. O resultado: mais mortes e indicadores de segurança piores.
O problema afeta especialmente as polícias militares, diz ele. Elas são as mais numerosas em todo o país. De acordo com a Constituição, são força reserva do exército. Seguem, por isso, uma estrutura hierárquica rígida, que permite pouco poder de decisão ao policial que está nas ruas. “A eles, cabe obedecer ordens. Não há autonomia para diagnosticar problemas e sugerir soluções”, diz Soares.
É uma estrutura inadequada para o papel que deveriam desempenhar. A rigidez hierárquica, diz Soares, é adequada ao trabalho das forças armadas. Responsáveis pela defesa nacional em caso de agressões por um inimigo externo, elas têm de reagir com celeridade. No geral, têm também um alvo claro, um inimigo bem definido a quem combater. Não é essa a função das polícias. “As polícias, civis ou militares, existem para evitar violações de direitos”, afirma. Seu objetivo central é o de garantir segurança, e não o estar prontas para o combate armado.
A Constituição também impõe uma restrição importante às PMs: elas estão impedidas de conduzir investigações. No jargão da segurança pública, não se encarregam do ciclo completo do policiamento. Resta a elas, por isso, prender suspeitos em flagrante. “Por isso, se amparam na Lei de Drogas para combater o varejo das substâncias entorpecentes”. Essa composição de fatores cria um quadro propicio para a realização de operações de inspiração bélica, em territórios periféricos. Que são pouco efetivas no combate ao tráfico — mas que, não raro, resultam na morte de pessoas negras e pobres. “Lança-se o policial numa infindável guerra às drogas, em que ele tem autorização para matar”, afirma.
Soares ressalta que lógica militar não é privilégios das PMs. “Em termos de brutalidade e uso da força letal, as polícias civis não são melhores que as militares”, afirma. Na sua avaliação, as forças policiais deveriam evoluir para assumir estruturas mais plásticas, e que permitissem maior autonomia ao policial que atua na rua. De modo que ele se convertesse numa espécie de gestor local da segurança pública. Ele seria capaz de manter diálogos com a população da região e com o governo, de modo a diagnosticar quais os principais problemas de segurança daquela comunidade. E trabalharia em rede: assinalando, para a prefeitura, que regiões precisam de investimentos em iluminação pública, por exemplo. Ou alertando as escolas que é preciso discutir a cultura do estupro (no caso de ser esse o problema diagnosticado). Seria um trabalho baseado no diálogo e na investigação. E que exigiria um novo perfil de policial, com maior investimento em formação, e maiores salários. Algo semelhante ao que ele tentou implementar em Porto Alegre há quase 20 anos.
O modelo defendido por Soares não é consenso. Há estudiosos do tema que defendem mudanças mais graduais. Para alguns, a adoção do ciclo completo, que liberaria as PMs para conduzir investigações, já seria positivo. “Esse foi o caminho seguido pelo Chile, que viu caírem seus índices de violência policial desde então” afirma o professor Rodrigo Azevedo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC- RS) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para aonde quer que caminhe a solução, no entanto, ela parece apontar para uma maior participação popular nas discussões sobre segurança pública.
Segurança como um serviço
Em 2009, o governo federal convocou a primeira — e, até hoje, única — conferência nacional para tratar de segurança pública no Brasil. Durante quatro dias, representantes da sociedade civil, policiais e acadêmicos se reuniram em Brasília, para discutir políticas para o setor. “O encontro foi pensado nos moldes das conferências de saúde e educação. E foi uma rara oportunidade que tivemos de discutir a atuação das polícias”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. O resultado do encontro desapontou um pouco: “Surgiu, dali, uma carta de princípios bastante influenciada por interesses corporativos. Que basicamente dizia ser preciso criar mais polícias”, diz ela. Apesar disso, afirma Carolina, foi uma das poucas ocasiões em que diferentes atores se reuniram para discutir uma questão que, a não ser em tempos de crise, passa um pouco ao largo do debate público.
Ao longo dos últimos 30 anos, desde a Constituição de 1988, as políticas sociais relevantes — como de saúde e educação — passaram por um processo de municipalização. A ideia subjacente era de que cada um dos cerca de 5 mil municípios brasileiros vive realidades distintas, e está habilitado, por isso, a pensar seus problemas e soluções locais. No caso da saúde, por exemplo, o governo federal define estratégias gerais, que são implementadas pelos municípios. As políticas são discutidas em fóruns com participação popular e o financiamento é responsabilidade dos três entes federados: o federal, estadual e o municipal.
No caso da segurança pública, a responsabilidade pela manutenção das polícias recaiu sobre os estados. E a sociedade se afastou do debate. Em parte, diz Carolina, porque essa é uma conversa delicada — e as polícias costumam responder mal às críticas. “ Nas sociedades democráticas, o Estado detém o monopólio da força. A polícia está legitimada a usar a força, mas ela interpreta essa autorização de maneira muito absoluta”, aponta. “Se você delegou o uso da força à polícia, você pode controlá-lo. Pode opinar. Mas, no Brasil, não se incorporou essa visão”.
Segundo ela, é preciso encarar o trabalho policial como um serviço público, sujeito a reformulações e a mecanismos de controle externo. Mecanismos capazes de, efetivamente, punir práticas reprováveis ou criminosas, e de premiar decisões acertadas.
Para a socióloga Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra para uma Nova Política sobre Drogas, é preciso, também, deslocar o debate da lógica punitivista. “E entender que segurança pública não é, apenas, caso de polícia”,afirma ela. A construção de uma sociedade mais segura envolve a compreensão dos fatores que geram os crimes, e que podem ser afetados por políticas educacionais ou por mudanças na infraestrutura urbana.
É necessária, ainda uma mudança de cultura política. “Que substitua o mantra de que bandido bom é bandido morto”, diz Carolina, do Sou da Paz.
Esse talvez seja, inclusive, o avanço com maior potencial de impacto. Nos meios militares, há quem diga que a tropa é o espelho de seu comandante. “No caso das polícias estaduais, o comandante é o governador”, diz Ignácio Cano, da Uerj. Nas últimas eleições, o Brasil alçou ao poder governantes que defendiam o discurso de que é preciso endurecer a atuação das polícias — e, inclusive, permitir que policiais matem sem risco de punição. Esse clamor pelo endurecimento das práticas policiais gera dividendos políticos, mas cria um ciclo vicioso. “Porque ele não gera mais segurança. E a resposta passa a ser endurecer mais”, afirma. “Hoje, no Brasil, a raiz da violêncian policial é política. Há um projeto político de extermínio”.
Nesse cenário, diz ele, é difícil que soluções de caráter técnico, voltadas à redução da letalidade policial, prosperem. Mesmo ciente das dificuldades, Carolina Ricardo se permite uma nota mais otimista. “Historicamente, momentos de crise são catalisadores de mudanças nas polícias”, diz ela. “Nas crises, é importante ter uma combinação de pressão externa — como protestos nas ruas — e pressões internas — como policias convencidos de que é preciso mudar. Nós temos tudo isso no Brasil hoje”
Foto de topo: a PM paulista durante protesto em junho de 2013 (Mídia Ninja)
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