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Como os indígenas Paiter Suruí usam tecnologia para proteger seu território

Rafael Ciscati

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Na cultura do povo Paiter Suruí, que vive entre os estados de Rondônia e Mato Grosso, as castanheiras são árvores sagradas. Segundo as histórias desse povo, milhões de anos atrás Palob – o criador – pediu que seu discípulo Gorah subisse em umas dessas árvores, de onde poderia observar a criação do mundo. Depois disso, as castanheiras, que eram árvores baixas, passaram a estar entre as mais altas da floresta. Segundo seu costume, cada família Paiter cuida de um determinado número de castanheiras. Usam as castanhas no preparo de pratos tradicionais, ou vendem o fruto para gerar renda. Se uma árvore tomba na mata, cai porque morreu: os Paiter Suruí jamais as cortam.

Por isso mesmo, no início de 2021, um grupo de Paiter Suruí se desesperou ao encontrar uma clareira aberta na mata. Os indígenas, cujos nomes foram suprimidos dessa reportagem por questão de segurança, atuam no Museu Paiter a Soe, instituição criada por eles para preservar a memória desse povo. 

A golpes de motosserra, um conjunto de castanheiras tinha ido ao chão. Altas e frondosas, as árvores tinham sido abatidas por madeireiros ilegais. Criminosos que, há anos, circulam pela Terra Indígena Sete de Setembro, onde os indígenas vivem. 

“De início, os madeireiros cortavam o mogno”, contam os Paiter. Nativo da Amazônia, o  mogno brasileiro é considerado uma madeira nobre. Ameaçado de extinção, seu corte e comercialização são proibidos desde 2001. “O mogno da região acabou. Agora, eles cortam as castanheiras”. Os indígenas denunciaram o ocorrido. Procuraram a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público Federal. Os criminosos eram afugentados, mas logo voltavam. 

Temendo o desaparecimento de suas castanheiras sagradas, a equipe do museu Paiter A Soe decidiu agir. Desde 2021, eles e outras 18 famílias da aldeia Gapgir conduzem um trabalho de monitoramento das árvores. O projeto, batizado como Ur Paiter Ey – defendendo a nossa gente, já recebeu apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, mesma instituição que mantém Brasil de Direitos. Ao longo dos últimos três anos, o grupo replantou mudas de castanheiras nas áreas onde as árvores foram cortadas; fomentou boas práticas de coleta da castanha, com foco na participação da mulheres e, com a ajuda da tecnologia, vem acompanhando a movimentação dos madeireiros na mata, de modo a denunciá-los às autoridades. 

Localizada em Rondônia, quase na fronteira com o Mato Grosso, a Terra Indígena Sete de Setembro reúne 28 aldeias Paiter Suruí. Gapgir, onde vive a equipe do museu Paiter A Soe,  é a maior delas, com cerca de 450 pessoas. Por anos, o território foi ameaçado pela ação de garimpeiros. Os criminosos foram expulsos na década de 1980, quando a terra indígena foi demarcada pelo governo federal. Deixaram um vácuo, que os madeireiros ocuparam. 

Os Paiter nos contam que, de início, os indígenas não se opuseram à extração da madeira. Faltavam alternativas econômicas. Algumas aldeias arrendavam parte de seus territórios a fazendeiros: em troca do pagamento, os agricultores utilizavam a terra para cultivo. A atividade é ilegal. Já outros indígenas, especialmente os mais jovens, viam na venda da madeira um jeito rápido de ganhar dinheiro. 

Essas noções mudaram com o tempo: perto do final dos anos 2000, no auge da atividade madeireira, ganharam fôlego entre os paiter-suruí discussões que tentavam aliar geração de renda à preservação da floresta e de sua cultura tradicional. “Passamos a falar sobre sustentabilidade”, diz uma das lideranças. Em 2008, os paiter publicaram o Plano de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro. Na abertura do documento, contam que seu objetivo era evitar que os Paiter tivessem “ o mesmo destino incerto que diversos outros povos têm seguido e, para quem sabe, pela oportunidade de realizar experiências adaptáveis a outras etnias”.

Hoje, parte do sustento dos Paiter Suruí vem da venda das castanhas e do cultivo de café orgânico. O café foi levada à terra indígena por colonos do sudeste, retirados do território depois que a terra indígena foi demarcarda.

Outra parcela da renda é gerada pelo etnoturismo, praticado na aldeia Gapgir desde 2016. O Museu Paiter a Soe se orgulha de ter sido um dos pioneiros da iniciativa. Nesse modelo, viajantes de outros estados e culturas conhecem a terra indígena, e se hospedam nas moradias dos paiter, para se aproximar de seu modo de vida.

Todo esse trabalho é incompatível com a presença de madeireiros, cuja violência torna perigosa a circulação pelo território. “Eles destroem a floresta e abusam das mulheres”, conta uma das pessoas responsáveis pelo projeto dos paiter. “Não me sinto segura em circular com turistas, ou trabalhar na roça, sabendo que há madeireiros por perto”.

Os ataques às castanheiras,como aquele presenciado pelo grupo de Paiter em 2021, provocaram a reação dos indígenas. Geralmente pacíficos, eles revidaram destruindo os tratores usados pelos criminosos. A tensão na terra indígena cresceu.

O projeto desenvolvido pelo Museu Paiter a Soe busca uma solução para o cenário de violência. Ele consiste em garantir que as castanheiras, principal alvo dos criminosos, recebam monitoramento frequente. Toda semana, os colaboradores do projeto se dividem em grupos, que visitam os locais onde as árvores crescem. São lugares no meio da mata, distantes da aldeia. Essa rotina é novidade para os paiter-suruí, que costumavam visitar as árvores somente nos meses de colheita, entre janeiro e março.

A comunidade também recebeu treinamento de segurança, para evitar se expor a riscos. Antes, os indígenas costumavam cultivar roçados ou fazer a colheita das castanhas em pequenos grupos, restritos aos seus núcleos familiares. Agora, esses trabalhos são feitos em grupos maiores.

Com os recursos do projeto, a aldeia também comprou um drone. Além de permitir o monitoramento remoto das árvores, o aparelho propiciou uma vantagem inusitada: quando o veem sobrevoando as áreas com castanheiras, os madeireiros fogem. “Eles não sabem se o drone é nosso ou do Ibama”, diz uma das participantes do projeto. O Museu,  em parceria com a  Associaçao Gap ey, uma  universidade e outras entidades, ainda faz um trabalho de geolocalização de cada castanheira, de modo a saber o ponto exato onde está cada árvore. “Fizemos uma aliança entre a tecnologia e o saber ancestral”.

Ao longo dos últimos três anos, o grupo reflorestou 5 hectares – o equivalente a 5 campos de futebol – com mudas de castanheiras. Uma vitória que os Paiter Suruí comemoram, visto que as mudas de castanheira são escassas. É uma riqueza que ficará para as próximas gerações: a castanheira demora a crescer. Leva, em média, 30 anos para dar os primeiros frutos.

O que já dá frutos, no entanto, é o trabalho de educação ambiental, e sobre suas tradições, que o projeto desenvolve com os moradores da própria aldeia. Além de falar sobre estratégias de monitoramento e segurança, os indígenas discutem a importância de manter a floresta em pé, para si e para as próximas gerações. “Muitas famílias com as quais trabalhamos deixaram de arrendar suas terras a fazendeiros”, conta uma participante do projeto. Segundo ela, as famílias revitalizaram os roçados ao plantar alimentos tradicionais. Houve avanços também, diz ela, na conscientização dos mais jovens, que estavam seduzidos pelos ganhos da extração de madeira, e agora trabalham para salvar as árvores.

Apesar de centrar os trabalhos na aldeia Gapgir, o grupo recentemente estendeu os treinamentos a outras duas aldeias da Terra Indígena Sete de Setembro. E, em novembro passado, realizou uma campanha que resultou em uma Carta Compromisso em favor da proteção das castanheiras. O documento foi assinado por autoridades como o secretário de meio ambiente de Cacoal, o município onde a aldeia está localizada.

As conquistas animam a equipe do Museu Paiter a Soe, que acredita na união entre saberes e pessoas para salvar as castanheiras. “Está todo mundo consciente do que precisa ser feito. E botando a mão na massa”. 

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