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Como ser antirracista, segundo quatro ativistas

Rafael Ciscati

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por Rafael Ciscati

No Brasil, o racismo é um fenômeno facilmente expresso em números. Pretos e pardos representam 56% da população. Mesmo assim, são minoria nos espaços de decisão: ocupam pouco mais de 29% dos cargos de gerência nas empresas brasileiras. Entre os mais pobres, os negros são muitos: dentre os 10% dos brasileiros com menor renda familiar mensal, 75% são negros. Entre os que morrem, eles são maioria: uma pessoa negra tem 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio que uma pessoa branca.

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Os dados constam no estudo Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, divulgado neste mês pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Traçam um quadro desanimador: mais de 100 anos passados desde o fim da escravidão, um abismo parece separar negros e brancos no país. Quase metade dos negros no Brasil vive em domicílios sem ao menos um serviço de saneamento básico, como esgotamento doméstico ou acesso a água potável. O problema afeta toda a população. Mas, entre brancos, esse percentual é muito menor: menos de 28%. Há mais negros desempregados que brancos. Negros são maioria entre os analfabetos. E, apesar de ter aumentado o número de estudantes pretos ou pardos no ensino superior (em 2018, eles passaram a representar 50,3% dos alunos matriculados em universidades públicas), as chances de um jovem negro cursar uma faculdade ainda são bem menores que as de um jovem branco: em 2018, 80% dos brancos entre 18 e 24 anos que estudavam estavam na universidade. Entre os negros, esse percentual caía para 56%.

“Há, no Brasil, uma exclusão estrutural, que atravessa sobretudo pessoas negras, pessoas racializadas, moradores de territórios de favela e de territórios periféricos” afirma Mariah Rafaela da Silva, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e militante do Grupo Conexão G. O Brasil, esses dados mostram, é um país racista: “Ainda que muita gente negue”, lembra a socióloga Waneska Viana, pesquisadora do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, do Recife.

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No Dia da Consciência Negra, a Brasil de Direitos convidou quatro ativistas para refletir sobre as relações raciais no país. Cada qual apresenta suas conclusões acerca de uma questão fundamental: se vivemos em uma sociedade estruturada pelo racismo, como ser antirracistas? A questão parte de uma frase da intelectual e ativista estadunidense Angela Davis. Em 1979, enquanto discursava para uma plateia na cidade de Oakland, na Califórnia, Davis disse: ““Numa sociedade racista, não adianta não ser racista, nós devemos ser antirracistas”.

As quatro respostas a seguir sugerem que esse é um compromisso diário, e que se expressa de diferentes formas: na cobrança de políticas públicas que combatam a exclusão da população negra; na valorização do conhecimento gerado por intelectuais negros; na valorização da beleza da negritude. E na compreensão urgente de que a luta antirracista não pode ser exclusiva da população negra. Ela cabe a todos e todas, e é essencial para a construção de sociedades justas e democráticas.

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A prática antirracista é uma luta contra as desigualdades estruturais
Mariah Rafaela da Silva
Graduada em história da arte, é pesquisadora da UFRJ e militante do Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de favelas

“É preciso ser antirracista porque essa é uma questão ética, fundamental e orgânica para  a continuidade daquilo que a gente chama de democracia. É preciso ser antirracista porque a gente não pode tolerar práticas de discriminação ou de exclusão. Há, no Brasil, uma exclusão estrutural, que atravessa sobretudo pessoas negras, pessoas racializadas, moradores de territórios de favela e de territórios periféricos. Por isso, a prática antirracista não é uma luta apenas contra o racismo. É uma luta contra as desigualdades estruturais.

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Como ser antirracista? Primeiramente, adotando para si uma política de descolonização do inconsciente. Descolonizar  significa retirar forças e domínios de uma determinada região, de um determinado território. Significa fraturar essas forças e construir novos campos e novas perspectivas de existir. Uma descolonização do território necessariamente envolve toda a reestruturação política desse espaço. Quando a gente fala em descolonizar o inconsciente, fala de reconfigurar ou recituar todas as linhas de força que dominam nosso modo de pensar. Nossa linguagem, as coisas que a gente lê, as coisas que a gente quer assistir, as músicas que a gente quer ouvir. Para que a gente efetive, de fato, uma lógica antirracista,  a gente precisa se auto-descolonizar. Isso é imprescindível.

Para combater  o racismo no trabalho, é preciso distribuir de maneira ética e mais capilarizada o poder. É preciso ter uma política de distribuição do poder que perpasse elementos como a distribuição de gênero, distribuição racial, distribuição territorial. Isso, por si só, não garante avanços. Mas vai, de fato, reconfigurando as estruturas de poder. É preciso,  também, agir e reagir toda vez que uma prática racista for evocada. Precisamos ser intolerantes com aquilo que não é tolerável. Precisamos ser intolerante com os racista, com os transfóbicos, com os homofóbicos, com os classistas.

Na educação, é preciso estabelecer uma política de citacionalidade. Incluir, nas bibliografias que consultamos, não apenas autores negros.  Mas trazer, também, outras epistemologias que efetivem novas práticas educacionais. Novas epistemologias, novos conteúdos didáticos. É preciso trazer elementos da história dos povos negros, das políticas dos povos negros, para a gente reconstruir todo um sistema de saber/ poder que está dado há muitos séculos.

Há movimentos na universidade para fazer isso. Eles se iniciam com a política de cotas, com o acesso cada vez mais amplo das pessoas negras ou racializadas ao sistema de educação. E vem avançando, mas ainda de forma mais tímida do que o necessário.  A gente não vem só ressignificando os modos de citacionalidade, mas também as próprias práticas metodológicas do ensino. É preciso repensar o ensino a partir de outros pilares, que não sejam exclusivamente eurocêntricos, mas que sejam permeados e construídos a partir de outro lugar de conhecimento. Dos conhecimentos cituados, dos conhecimentos mais tradicionais. E isso implica necessariamente em falar de povos indígenas, povos quilombolas, povos racializados.”

Para se desenvolver, o Brasil precisa reparar os danos históricos causados à população negra
George Oliveira
Militante do Movimento Negro, Economista e Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social

“No Brasil, combater o racismo está longe de ser um dever exclusivo da população negra. Trata-se de um problema estrutural que está  presente em nossa sociedade e devemos (todos e todas), identificar e dirimir as bases que matêm as desigualdades etnicorraciais. O Brasil não alcançará o seu “tão sonhado” desenvolvimento, enquanto não reparar os danos históricos, materiais, sociais, econômicos e psicológicos a sua população majoritária –  cerca de 56% dos brasileiros, segundo o IBGE.

Há algumas ações que podemos empreender no combate ao racismo: a (auto)desconstrução de estereótipos negativos; o estímulo à diversidade étnico-racial no mercado de trabalho; e a construção ações afirmativas/reparatórias na educação.

A importância da luta antirracista está em identificar, reconhecer, denunciar e combater as bases racistas sobre as quais está assentada a sociedade brasileira. Ser antirracista é reconhecer e lutar pela sobrevivência física, pela memória coletiva e pela elevação da autoestima da população negra”.

Sou antirracista quando assumo meu cabelo, quando uso minhas roupas coloridas e fujo do padrão
Waneska Viana
Socióloga, é pesquisadora do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop)

“No mundo em que a gente vive, racismo e gênero são elementos estruturantes. Se você tem uma dessas características, se você é da cor negra, se você é mulher, você tem uma posição previamente demarcada na sociedade. Ser antirracista é, antes de tudo, entender que essa estrutura machista e racista existe — porque, infelizmente, muita gente não sabe ou não acredita que essa estrutura exista , e que determina a vida de pessoas. A partir daí, ser antirracista significa trabalhar diariamente para reverter esse quadro. 

No caso da população negra, essa resistência está demarcada nos nossos próprios corpos. Ela fica explícita quando a gente aceita e referenda nossos cabelos e nossos corpos na sua diversidade.  Ser antirracista, para mim, é pautar toda a minha vida nisso. Sou antirracista quando assumo meu cabelo, quando uso minhas roupas coloridas e fujo do padrão — do bege, do preto, do branco. Quando me aceito do jeito que eu sou na minha construção de identidade. E remeto isso para as pessoas que estão também no meu convívio. Acredito que a revolução se faz no miudinho. Do pequeno para o grande.

Ser antirracista, para mim, no meu cotidiano, é entender o meu valor. Ainda que a gente viva em uma sociedade que nos negue esse valor porque somos negros.  E, a partir daí, cobrar essa valorização para mim e para os outros. É possível fazer isso nas nossas relações pessoais e também nas nossas relações profissionais. Aqueles que chegaram a lugares de poder devem fazer isso: pautar a valorização da identidade negra,  pautar o negro como construção de conhecimento e de práticas emancipatórias. Se você é professor e, na sua escola, você faz isso, você está fazendo muito. Se você é profissional da saúde, pode discutir como essa preocupação orienta as suas práticas. Pode discutir o acesso da população negra aos serviços de saúde. E isso é ser antirracista”

A luta antirracista não é exclusiva da população negra
Maria Teresa Ferreira
Militante do Movimento de Mulheres Negras de Sorocaba (Momunes)

“É preciso ser antirracista porque a gente nunca vai ter uma sociedade livre e igualitária, em que as pessoas possam ter liberdade de pensamento e expressão, enquanto a cor da pelo for um impeditivo para que boa parte da população possa caminhar tranquilamente e acessar direitos.

As pessoas devem combater o racismo intervindo. Quando perceberem uma situação racista, devem interferir. E isso não significa somente acolher quem sofreu a agressão. É colocar a pessoa que causou a agressão no seu devido lugar. Se preciso for, recorrendo à lei: fazendo um boletim de ocorrência, fazendo uma chamada mais dura, ou mesmo sendo didático quando a situação assim exigir.  E então você me pergunta: ‘e se isso acontecer na mesa do almoço de família com a minha avó?’. Pois seja didático e diga: ‘Vó, assim não. Isso é feio’.

A gente passa a fazer parte da luta antirracista quando a gente percebe que essa luta não é uma responsabilidade exclusiva da população negra. E quando a gente se dispõe a intervir. Porque é só através das nossas ações concretas que essa situação vai mudar.”

Foto: Mídia Ninja

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