Condenado por prática religiosa, Pai de Santo aponta despreparo do judiciário
Edson de Omolu enfrentou anos de racismo religioso: “ vizinho arremessou uma barra de ferro e envenenou cachorro do terreiro”
Maria Edhuarda Gonzaga *
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por Pai Edson de Omolu, em depoimento à Maria Edhuarda Gonzaga
No dia 21 de janeiro de 2017 eu e mais 40 quarenta pessoas ocupamos a sede da Procuradoria Geral do Ministério Público de Olinda. A maior parte do grupo era composto por pessoas de axé, iniciadas nas religiões de matriz africana. Fizemos uma vigília e exigimos uma audiência com o procurador geral de justiça. Protestávamos contra a sentença que o Estado me destinara: quinze dias de prisão por enfrentar o racismo religioso praticado por uma família que morava na mesma rua onde fica meu terreiro.
Antes de explicar detalhes dessa história, vou me apresentar: sou pai Edson de Omolu, babalorixá da Tenda de Umbanda Caboclo Flecheiro. Omolu, na minha religião, é o orixá da terra e da cura. Minha trajetória com ele começou dentro da barriga, quando minha mãe enfrentou diversos problemas na gestação e procurou ajuda na espiritualidade.
Sempre tive muitos problemas de saúde. No terreiro que minha mãe frequentou durante a gravidez tinha uma rezadeira chamada Dona Biró. Ela sempre fazia muitos benzimentos em mim, então eu cresci nessa realidade. Apesar de parte da minha família, incluindo minha mãe, terem ido para o lado do espiritismo kardecista, nunca me identifiquei com a crença. Acredito que religião seja isso: você segue aquela que te serve melhor e te ajuda a caminhar na estrada da vida.
Eu me senti bem com os pés descalços na umbanda.
Quando entrei no curso de história na Universidade Federal de Pernambuco, fiquei muito focado na minha ascensão profissional e acabei me afastando da prática de terreiro e da espiritualidade. Eu tinha muitas ambições. Veja, eu era um menino periférico, vindo do morro, que de repente se viu em um espaço de produção de conhecimento, em um contexto de abertura do ensino superior via programas sociais. Tive acesso a várias bolsas de manutenção, comecei a viajar e me interessei muito pela área de ciência da religião e arqueologia funerária: o estudo dos restos mortais que estão em terras brasileiras.
Quatro anos depois, no último ano de curso, fui diagnosticado com uma doença autoimune. Em um processo inflamatório que não tinha cura e os médicos não sabiam explicar as condições, meu corpo atacava a si mesmo. Comecei a emagrecer muito, tinha hemorragia digestiva, precisei tomar medicações para impedir que minhas células atacassem o próprio tecido. Fiquei muito debilitado.
Minha mãe me levou a um centro espírita que tinha trabalhos de cura. Cheguei já pensando que não gostava daquela dinâmica com palestras e que preferia um tambor, mas foi ali que começou minha retomada a ele. O médico espiritual que me atendeu descreveu tudo que eu estava passando, vivendo, sentindo. Ao final, ele falou: “eu sei que você não está gostando muito de estar aqui, que seu negócio é aquelas coisas com vela, erva e tambor. Mas a gente vai te ajudar um pouquinho aqui e você vai encontrar um caminho de volta a sua casa”.
Vivemos em um país em que o acesso aos cuidados terapêuticos e à saúde mental é precário. A umbanda é, para muitos, uma forma de tratar problemas do corpo de maneira complementar, jamais sozinha. Na umbanda, entendemos que existe o nosso corpo físico e o corpo espiritual. Muitas doenças começam no nosso corpo espiritual, então a intervenção sobre ele traz um resultado no corpo físico e vice-versa. O terreiro acabou sendo, para mim, um local de refazimento e cura.
Depois desse momento no centro espírita, melhorei um pouco. Busquei e encontrei um terreiro de umbanda e comecei a me desenvolver numa nova linha, que me identifiquei mais. Depois, as entidades me deram um propósito de liderança: estava na hora de abrir meu próprio lugar para trabalhar a espiritualidade. Começou na sala de casa. Uma ou duas pessoas iam, tomavam passe ou faziam uma consulta. Uma vai comentando com a outra e a quantidade de pessoas interessadas foi aumentando com o tempo.
Em novembro de 2013, abri um espaço específico para ser o terreiro com o dinheiro de um Fundo de Garantia. Era a antiga casa da minha mãe, que ficava em Águas Compridas, um bairro periférico na zona norte de Olinda. Fiz isso porque a entidade Caboclo Flecheiro me orientou, mas busquei a confirmação no jogo de búzios com cinco sacerdotes mais velhos e suas entidades. Tomei as obrigações necessárias e estamos aqui há dez anos. Por causa desse primeiro incentivo de Caboclo Flecheiro, nomeei meu terreiro de Tenda de Umbanda Caboclo Flecheiro, em sua homenagem.
Ao lado dele, havia uma casa abandonada, que servia para várias coisas ilícitas, como uso de drogas e até relações sexuais. O telhado estava bem destruído então tinha muita goteira e, por consequência, acúmulo de escorpião e mosquito da dengue. Fui no cartório de imóveis de Olinda e na associação de moradores: não tinha dono. Fui na prefeitura e achei o nome de uma pessoa, mas ela já tinha morrido e deixou dívidas de IPTU.
Olhei para aquilo e pensei no que poderia ser feito. Chamei as pessoas que frequentavam ali e perguntei se não poderiam realizar suas atividades em outro lugar porque eu queria montar uma biblioteca ali. Como eu já era conhecido na comunidade como “O professor” e já fazíamos um trabalho de sopão de maneira voluntária, elas concordaram. Algumas pessoas da comunidade e do terreiro foram me ajudar a cobrir o telhado vão por vão. Tiramos muita camisinha, colher e pontinha de vela, usadas para consumo de entorpecentes.
Eu sempre quis fazer mais. Para mim, o espiritual precisa andar lado a lado com o social. Nunca gostei de só dar o auxílio espiritual, mas também nunca gostei da caridade. Vou dar comida, mas vou trabalhar a cultura e fornecer acesso a literatura. Coisa de professor.
Aos poucos fomos criando o Centro Social Caboclo Flecheiro, um espaço onde oferecemos capoeira para jovens e crianças, grupos de estudos e organizamos cestas básicas. Na pandemia nos articulamos com a empresa Vale e a Central Única das Favelas (Cufa) para alimentar 120 famílias.
Nada disso, no entanto, impediu que sofrêssemos racismo religioso por anos.
Em 2015 começaram as agressões de um vizinho fundamentalista – que aqui chamaremos de Roberto. Ele tinha problemas com todos da comunidade, mas nos perseguia mais em razão da religião e da sexualidade. Isso porque nunca fizemos distinção: alguns dos meus filhos de santo fazem parte da comunidade LGBTQIA+ e tem todo o direito de se expressarem em qualquer espaço que seja, inclusive os religiosos.
Um dia fomos despachar quartinhas de água – objeto onde as águas sagradas do terreiro são armazenadas – para pedir paz para um ritual que iríamos realizar.
Uma filha de santo desceu o morro, onde fica o nosso terreiro, com a quartinha na mão: iríamos jogar a água na terra como oferenda a entidade celebrada no dia. Como estamos em uma região íngreme, quem está acima consegue ver tudo o que acontece nas casas debaixo. Ela voltou constrangida: disse que, do alto do morro, viu o Sr. Roberto completamente nu, tomando banho no quintal de casa.
Quando eu o questionei, ele se enrolou numa toalha e respondeu: “Se você pode fazer sua casa de macumba e dar o c*, então eu posso tomar banho a hora que eu quiser, porque a casa é minha.”
Tentei prestar queixa do ocorrido na delegacia mas, depois de quatro horas de espera,o comissário disse que não havia razão para denúncia porque aquilo era briga de vizinho. Eu apontei que era um desrespeito à minha religião. Na época eu nem usei o termo racismo religioso. Quando chamaram o Seu Roberto na delegacia, ele prestou uma queixa contra mim e meus filhos de santo dizendo que tínhamos subido no muro e o ameaçado de morte.
O delegado me chamou para uma tentativa de mediação. Eu achava que tinha havido uma violação ao meu direito de culto. O delegado acreditava que, no máximo, ocorrera uma injúria entre duas pessoas. A proposta de conciliação era não usar mais tambor nos ritos, porque o tambor perturbava a família do Sr. Roberto. Só que todas as vezes que usávamos o tambor para fazer o chamamento das entidades, ele ligava caixas de som altíssimas viradas para o terreiro perturbando toda a vizinhança.
Acompanhado de um advogado eu disse que crime em relação a sexualidade e religião não poderia tramitar no juizado especial, tinha que ir para a vara criminal porque é de maior potencial ofensivo. A juíza concordou e mandou para a vara criminal. Isso foi em 2016 e está lá até hoje para ser julgado.
O processo que ele moveu contra mim, por perturbação do sossego público e ameaça, continuou seguindo no juizado especial, que corre mais rápido. O promotor de justiça me ofereceu a possibilidade de encerrar o processo. A condição era que eu pagasse quinhentos reais de doação para um centro espírita. Eu recusei, porque com esse dinheiro eu poderia ajudar muita gente do meu terreiro que precisava, e disse que queria ser julgado. Mal sabia quais seriam as consequências disso.
Em todo o momento, o judiciário lidou com a situação como se fosse uma questão de perturbação do sossego público, apesar das agressões que o vizinho cometia contra nós. Uma vez ele invadiu o terreiro com um pedaço de pau, batendo no muro porque estávamos pintando e ele disse que o muro era dele. No período de festas juninas ele apagou uma fogueira que acendemos para Xangô. Ele chegou a arremessar uma barra de ferro na minha cabeça e envenenou um cachorro do terreiro, que morreu nos meus braços.
No dia da audiência a promotora e a juíza me trataram de maneira extremamente hostil. O Seu Roberto levou duas pessoas que nem moravam na nossa rua como testemunhas. Eu levei três vizinhas: uma católica, uma evangélica e uma frequentadora do terreiro. Todas disseram que o que perturbava o sossego público era o som do seu Roberto e não o som do terreiro. Ainda assim, eu fui condenado a quinze dias de prisão.
Como era uma pena pequena e eu era réu primário, a pena de prisão poderia ser substituída por prestação de serviços comunitários. Em contrapartida, eu perderia meus direitos políticos e, como seria fichado, não poderia mais assumir um cargo de concurso público (como o que ocupo hoje, de professor de história na rede pública). Foi por isso que, naquele início de 2017, no dia que marca o combate nacional à intolerância religiosa, decidimos protestar. Após a nossa manifestação na sede da Procuradoria Geral do Ministério Público de Olinda, fizemos uma reunião com o Procurador Geral de Justiça e exigimos uma audiência pública para averiguar o caso como racismo religioso.
O Ministério dos Direitos Humanos mandou uma comitiva de Brasília para saber o que estava acontecendo. A OAB entrou com um pedido de amicus curiae (amigo da corte) para acompanhar o processo. O Conselho de Igualdade Racial de Olinda e de Pernambuco, o líder da Câmara (Isaltino Nascimento, do PSB) e o líder da oposição na Assembleia Legislativa (Edilson Silva, do Psol) sentaram na mesma mesa se insurgindo contra a sentença.
Essa pressão dos movimentos sociais, da mídia, dos povos de terreiro e da OAB fez o próprio Ministério Público, na hora de avaliar o recurso que apresentei, voltar atrás, percebendo que ali havia mesmo uma situação de racismo religioso. No mesmo dia em que fui absolvido em segunda instância, o órgão publicou uma recomendação construída junto com os povos de terreiro, fruto dos nossos debates, que dizia para o poder judiciário se atentar aos casos de racismo religioso. Para que não tratassem denúncias, automaticamente, como perturbação do sossego público. Que procurassem saber se não eram vizinhos, motivados por racismo, tentando prejudicar uma comunidade de axé.
Depois que a sentença condenatória contra o terreiro – porque não era só contra mim –, caiu por terra, a família do Sr. Roberto resolveu entrar no cível alegando que a casinha que abriga o Centro Social e a biblioteca pertenciam a eles. Em 2018, quando estava a caminho do trabalho, recebi uma ligação de uma filha de santo dizendo que havia um oficial de justiça ali na frente para fazer uma reintegração de posse imediata do lugar, acompanhado da família do vizinho, que gritava “aleluia” e dizia que o lugar finalmente seria de Jesus.
O desembargador e relator do caso viu o Centro Social, viu o processo e disse que não poderiam desocupar um lugar assim, ainda mais porque não havia provas de que era daquela família de fato. O único documento que eles apresentaram foi um pedaço de jornal alegando que em 1960 uma pessoa comprou por não sei quantos cruzeiros e ela fazia parte da família dele. O nosso centro social convive há cinco anos com essa tentativa de tomar nosso espaço.
Esse processo em específico ainda não chegou ao fim, mas está para ser sentenciado. Nas audiências vêm a OAB, a Arquidiocese de Recife, a associação de moradores – que fez os documentos para nós, atestando sua concordância com a nossa ocupação e assinaram o termo de posse –, a prefeitura e várias outras instituições falando que estamos de boa-fé. Pagamos até as dívidas de IPTU!
Os casos de racismo religioso que o meu terreiro sofreu estão completamente conectados ao racismo religioso que vemos no nosso país. Onde os meus vizinhos aprenderam que tinham que nos demonizar? No púlpito da igreja deles, que, na verdade, não são religiosos: são púlpitos de ódio.
No meio desse caminho todo, fomos encontrando outros corações que estão em sintonia com a gente na tentativa de continuar esse trabalho de ancestralidade e formação educativa.
Hoje, na Tenda de Umbanda e Centro Social Caboclo Flecheiro, oferecemos oficinas estruturadas de capoeira de Angola, de leitura e escrita criativa, de direitos humanos e cidadania, de inglês e de matemática básica para cinquenta jovens. Eles recebem um conjunto de vestimentas para praticar o esporte (abadá, calça e sapato), material escolar, apostila e um lanche, em parceria com algumas escolas do estado.
O que fazemos é certificado pela Secretaria de Prevenção à Violência e às Drogas de Pernambuco e pelo escritório de Prevenção da Violência e Crime da ONU. E é a partir desse trabalho enquanto liderança espiritual e educador popular, acolhendo as dificuldades e o amor, que encontro sentido na minha vida.
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