Brasil de Direitos
Tamanho de fonte
A A A A

Covid-19 matou mais de 90 defensores de direitos humanos em 2020

Rafael Ciscati

5 min

Imagem ilustrativa

Navegue por tópicos

O cacique Aritana Yawalapiti, do alto Xingu, fora preparado desde a infância para assumir a liderança de seu povo. Poliglota, se notabilizou entre os povos do Xingu por ser um mediador justo — e por nunca ter sido derrotado em uma luta de huka huka, o estilo marcial típico da região. Em julho passado, Yawalapiti foi diagnosticado com Covid-19. Transferido para um hospital em Goiânia, faleceu no mês seguinte.

>>Leia o relatório completo

Pouco antes, naquele mesmo ano mas a  2 mil quilômetros de distância, em Sobral (CE), morreu Antônio Ferreira dos Santos. Bom cantor e exímio violeiro, Santos era conhecido por toda a comunidade cigana do Ceará como cigano Barroso – em referência a um bairro de Fortaleza que costumava frequentar. É costume, entre os ciganos, que a perda de um ente querido seja seguida por uma série de rituais de luto. Vítima do Sarscov-2,  Barroso não teve velório.

>>Falhas em programa nacional deixam ativistas desprotegidos, diz relatório

Ao longo de 2020, Yawalapiti, Barroso e ao menos outros 90 defensores, lideranças populares e ativistas morreram vítimas da Covid-19 no Brasil. Seus nomes constam em um levantamento organizado pela ONG carioca Justiça Global encaminhado à Organização das Nações Unidas (ONU) neste mês, e divulgado ao público no último dia 08. A lista abrange perdas ocorridas entre março e agosto do ano passado. Na avaliação da entidade, o número de mortos dá mostras da situação de vulnerabilidade que aflige ativistas no país. ” A política federal de proteção a defensores , responsável por dar suporte a essas pessoas, não se adaptou à pandemia ” afirma Melisanda Trentin, coordenadora da Justiça Global e uma das autoras do trabalho. “O governo falhou na proteção da população em geral, e falhou no dever de proteger esses defensores, especificamente”.

>>Governo assumiu o risco da nossa morte coletiva, dizem quilombolas ao STF

O perfil das vítimas espelha aquele verificado na população em geral. O levantamento foca em três grupos prioritários : populações quilombolas, povos indígenas e na população LGBTQIA+.  “São populações que encontram dificuldades para acessar cuidados de saúde, porque moram distantes de grandes centros ou porque sofrem algum tipo de discriminação”, diz Melisanda.

>>Covid-19: vozes negras exigem vacina e atenção às comunidades quilombolas

Metade dos mortos relacionados no relatório é indígena. Além de Yawalapiti, aparece na lista o cacique Paulinho Paiakan, considerado uma liderança histórica entre os povos indígenas da Amazônia. Morreu, também, o cacique guarani Gregório Venega, em São Miguel do Iguaçu, no Paraná. Na década de 1980, Venega fez parte do grupo forçado a deixar a aldeia Jacutinga, em Foz do Iguaçu, depois da formação do lago da usina de Itaipu. “A falta de medidas eficazes para prevenir o impacto desproporcional da Covid-19 nos povos indígenas poderia demonstrar ainda mais a intenção de destruir um grupo étnico, ao infligir deliberadamente ao grupo condições de vida com vista a provocar sua destruição física, total ou parcial, conforme a definição de genocídio do artigo 6º do Estatuto de Roma”, afirma o texto.
Para a Justiça Global, os percalços brasileiros no combate à Covid-19 têm raizes anteriores à pandemia. O relatório aponta medidas levadas a cabo pelos últimos governos e que, na avaliação dos autores, fragilizaram a capacidade do sistema de saúde de reagir à emergência sanitária. É o caso da Emenda Constitucional 95, que congelou os investimento federais nos patamares de 2016. Segundo os pesquisadores, o quadro foi agravado pela maneira errática como o governo federal conduziu o combate à pandemia. Num período de seis meses, o titular da pasta da saúde mudo três vezes. Verba da União foi destinada à compra de medicamentos ineficazes no tratamento do novo coronavírus, e o presidente Jair Bolsonaro promoveu aglomerações públicas — contrariando as recomendações de especialistas em saúde.
A crise sanitária, por fim, compôs um cenário já hostil à atuação dos defensores : em 2020, recrudesceram conflitos no campo e aumentou o número de ativistas assassinados. Estudo anterior, coordenado pelo Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, apontou que faltaram investimentos no programa federal destinado a proteger esses ativistas.

Melisanda conta que o estudo recém-publicado foi encaminhada às relatorias da ONU que tratam de defensores e defensoras de direitos humanos, formas contemporâneas de racismo e formas de discriminação. A expectativa é de que o organismo internacional analise os dados e cobre explicações do governo brasileiro. Mas ainda não há previsão de quando — e se — a ONU irá se pronunciar. “O desmonte dos direitos no Brasil é generalizado e, desde 2016, a sociedade civil perde espaços de interlocução com o governo federal”, afirma. “Aqui no Brasil, já há quase uma normalização dessas violações. Por isso, esse diálogo com organismos internacionais é fundamental”.

Foto de topo: : Enterros de indígenas mortos por Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, no cemitério do Parque da Saudade, familiares de Felisberto Cordeiro. © Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real/ Maio 9, 2020 (Reprodução)

Você vai gostar também:

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

3 abolicionistas negros que você precisa conhecer

Para entender

10 min

Imagem ilustrativa
Mulheres

Rafael Ciscati

Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção

Entrevista

11 min

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA

Notícias

8 min