Covid-19: sem conseguir renda emergencial, imigrantes criam redes de apoio mútuo
Rafael Ciscati
10 min
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Já era começo de uma noite de sexta-feira quando a boliviana Julieta Alejo enviou uma mensagem ao grupo de whatsapp que mantém com conterrâneos: “Olá. Será que alguém poderia ajudar uma família que precisa de alimentos?”, conta ter escrito. O apelo não era em benefício próprio. Dias antes Camila* – uma jovem boliviana, vizinha de Julieta no bairro onde moram em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo – batera à porta da família Alejo. Buscava trabalho: “Eu sabia que ela precisava de comida. Para si e para os filhos. Mas tinha vergonha de pedir”, diz Julieta.
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Julieta não tinha nada a oferecer. Desde que o estado de São Paulo decretou o fechamento de todos os serviços não essenciais – uma medida importante para frear o avanço do novo coronavírus, o Sars-Cov-2 – ,no final de março, Julieta e a família viram sua renda desaparecer. Há 8 anos, ela e o marido mantêm uma pequena oficina de costura em casa. As peças que produzem são destinadas a uma loja no bairro paulistano do Bom Retiro. Com a quarentena, a produção teve de parar: “O dono da loja encerrou as compras. Recebemos nosso último pagamento em março”. Na casa da família, a comida na dispensa míngua conforme o dinheiro escasseia. “Às vezes, as crianças sentem fome, e a gente não sabe o que dizer”, conta ela, que tem seis filhos. Hoje, uma refeição típica na casa dos Alejo se resume a batata e arroz. “Comemos, também, muito ovo. Porque a carne é cara”.
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Para resistir à pandemia, Julieta espera receber o auxílio emergencial aprovado pelo governo federal. Ela fez o cadastro que, até esta quarta-feira, estava em análise. São R$600,00, pagos a profissionais autônomos e famílias de baixa renda, aos quais os estrangeiros que vivem no país também têm direito. Uma ajuda que Camila, a vizinha que buscou socorro na casa de Julieta, não conseguiu requisitar. Grávida de oito meses, Camila e o marido vivem em um casa de três cômodos, com os dois filhos pequenos. Falam pouco e mal o português. Quando chegaram ao Brasil, se lançaram ao trabalho numa oficina de costura. Não houve tempo, ou dinheiro, para providenciar um documento hoje essencial – a Carteira de Registro Nacional Migratório, ou CRNM. Uma espécie de RG para estrangeiros, que lhe permitiria abrir uma conta digital, onde o dinheiro do auxílio seria depositado. Hoje, com os postos da Polícia Federal fechados devido à pandemia, Camila não consegue pedir o registro e regularizar sua situação migratória.
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Desde que o pagamento do auxílio emergencial foi anunciado, no começo de abril, surgem dúvidas quanto a como permitir que imigrantes residentes no Brasil tenham acesso ao benefício. Instituições que acompanham essa população relatam problemas. Há casos de pessoas cujo CPF está irregular, porque no registo não constam dados de filiação: algo comum nos documentos brasileiros, mas que não se repete em outros países da América Latina. Os obstáculos são ainda mais aflitivos para pessoas como Camila e sua família. Eles fazem parte de um contingente de imigrantes cuja situação migratória está irregular, ou a quem faltam documentos. Vivem, hoje, numa espécie de limbo jurídico, sem resolução à vista: “Para todos os efeitos, os imigrantes indocumentados são invisíveis para o Estado brasileiro”, conta a advogada Karina Quintanilha, especializada em direito migratório e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A avaliação consta em dois ofícios propostos por representantes da sociedade civil ao Conselho Municipal de Imigrantes de São Paulo, para ser enviados à Receita Federal e à Caixa Econômica Federal . O Conselho é um órgão consultivo, ligado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Nos textos, afirma que as atuais regras impostas para o recebimento do auxílio criam entraves para famílias de estrangeiros residentes no Brasil. A primeira dessas dificuldades diz respeito à regularização e emissão do CPF. Além da falta dos dados de filiação, há imigrantes que não dispõem de comprovantes de endereço, necessários para providenciar o documento. É o caso daqueles que vivem na rua, em cortiços e ocupações. Os ofícios relatam, também, casos em que a emissão do documento foi negada em razão da nacionalidade.
Apontam, ainda, a necessidade de mudanças nas regras para a abertura de uma conta eletrônica na Caixa. A medida é necessária no caso daquelas pessoas que não dispõem de conta em banco. Hoje, a Caixa pede que o futuro titular da conta informe seu RG: “Trata-se de um documento restrito aos brasileiros”, explica o texto da comissão de migrantes. O grupo pede que a demanda seja alterada, para permitir à pessoa informar o CRNM, CPF ou mesmo a cédula de identidade do país de origem, no caso de não ter qualquer desses documentos.
Sem documentos, e sem alternativas, restou à Camila buscar auxílio entre os conhecidos. A mensagem que Julieta disparou naquela noite foi lida por cerca de 20 famílias de bolivianos que ela acompanha em Carapicuíba. Julieta é uma agente multiplicadora – uma voluntária formada pelo Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI). A instituição, com sede na região central de São Paulo, presta auxílio e orientação a imigrantes. Reúne interessados – na maioria, mulheres — em rodas de conversa e cursos que informam sobre os direitos de que eles dispõem no Brasil.
Em tempos normais, Julieta circula pelas ruas do bairro, instruindo vizinhos recém-chegados sobre como regularizar sua situação migratória. Ou como requerer auxílios sociais. Camila costumava participar das rodas de conversa organizadas por ela. Em torno de agentes como Julieta, formam-se redes de ajuda mútua, que agora se articulam, por whatsapp, para resistir à pandemia: “As redes que essas agentes formam alcançam cerca de 1022 famílias, em 11 bairros de São Paulo e da região metropolitana”, diz a advogada Mirta Castellón, que coordena a formação das agentes no Cami.
Naquela noite, a rede de Julieta atendeu ao chamado. “Ninguém tinha dinheiro, mas cada um contribuiu com um pouco de comida. O suficiente para montar 3 cestas de alimentos”, conta. Havia arroz, óleo, feijão e açúcar. Além de Camila, as doações beneficiaram outras duas famílias bolivianas do bairro. Os alimentos foram entregues no domingo de Páscoa. Na ocasião, a católica Julieta não atentou para o simbolismo da data: “É verdade, era Páscoa”, riu. “Para nós não teve Páscoa. Passamos tristes, foi um dia comum”.
Cerca de 1,1 milhão de estrangeiros vivem hoje no Brasil, de acordo com dados da Polícia Federal. O número se refere a imigrantes cuja situação migratória está regularizada, e que dispõe de documentos. Nesse grupo, a maioria é de portugueses, seguidos de perto por Venezuelanos, Haitianos e Bolivianos. Não há estimativas seguras de quantos estrangeiros indocumentados residam no país, mas é possível que esse número dobre, de acordo com o CAMI.
Especialistas que acompanham essas pessoas afirmam que, mesmo que tenham documentos, e possam acessar benefícios sociais, esses imigrantes compreendem uma parcela da população especialmente vulnerável aos impactos da pandemia.
As razões para essa vulnerabilidade são econômicas e culturais. Números do Centro de Referência e Atendimentos para Imigrantes (CRAI) da cidade de São Paulo mostram que a maioria dos estrangeiros atendidos pela instituição entre 2014 e 2019 dizia estar desempregada ou na informalidade. As pessoas nessas condições somavam 75% do total. Parcela importante desse grupo trabalha em oficinas de costura que, com as lojas fechadas, não têm a quem vender. Muitos moram em casas alugadas sem contrato formal. É o caso de Julieta e de Camila, que temem ser despejadas: “Já combinamos com o proprietário de diminuir o número de cômodos que a gente aluga”, diz Julieta. Para conter custos, a família passará a morar em dois cômodos pequenos.
Por fim, entre os imigrantes indocumentados, a vulnerabilidade aumenta ante a impossibilidade de acessar serviços de proteção social: “Essa situação é resultado de políticas de indocumentação que dificultam o acesso à direitos. Além disso as barreiras com a língua, o desconhecimento das leis no Brasil, o racismo e a xenofobia são um desafio a mais, que estão se agravando com a pandemia” diz a advogada Karina Quintanilha, da Unicamp. Ela é uma das articuladoras do Fórum Fontie Ki Kwaze, que reune imigrantes, acadêmicos e representantes da sociedade civil para acompanhar as demandas das populações de imigrantes no Brasil. “ Estamos acompanhando situações dramáticas de fome e desespero. Em cidades como Nova York, com grande concentração de imigrantes indocumentados, já sabemos que latinos e negros estão entre as principais vítimas dessa pandemia, principalmente em razão da falta de políticas que garantam a quarentena e a prevenção de forma igual para todos”.
Na Europa, cientes dessas vulnerabilidades, autoridades se movem para facilitar o processo de regularização migratória. No começo de abril, Portugal concedeu cidadania plena a todo estrangeiro residente no país. A medida visa garantir que eles sejam atendidos, sem entraves, pelo sistema de saúde português.
Até agora, a resposta brasileira a esses desafios é considerada insuficiente: “Por aqui, faltam coisas ainda simples. Como orientações de saúde traduzidas para diferentes idiomas.”, diz a psicóloga boliviana Lineth Bustamante. Lineth é uma das colaboradoras voluntárias da Associação de Mulheres Imigrantes Luz e Vida. O grupo foi criado, há 5 anos, por imigrantes bolivianas e peruanas que viviam em Guaianazes, bairro no extremo leste de São Paulo. O objetivo era atuar no combate à violência de gênero. A chegada do novo coronavírus mudou os planos. Conforme cessava o trabalho nas oficinas de costura, as famílias acompanhadas pela Associação viram sua renda minguar. Hoje, conta Lineth, alguns falam em retornar para seus países de origem – onde têm parentes e redes de apoio consolidadas. O desejo é maior, justamente, entre os imigrantes indocumentados, que não esperam ter acesso aos auxílios do governo brasileiros: “Mas muitos receiam fazer essa viagem de retorno e ficar presos na fronteira”, conta a psicóloga.
Para oferecer algum alento, a Associação arrecada donativos para as famílias mais necessitadas. Nas contas do grupo, mais de 200 famílias já foram beneficiadas. Uma mensagem nas redes sociais ensina como colaborar. São doados alimentos e artigos de higiene. Sobretudo, leite e fraldas: “Há famílias numerosas, com crianças pequenas, e que precisam desse apoio”, diz Lineth. No último domingo, a casa da psicóloga, na Vila Mariana, se convertera numa espécie de centro logístico, onde as doações chegavam e de onde eram despachadas: “Tentamos fazer isso com presteza e com segurança”, diz Lineth. “É um desafio, mas é necessário. As pessoas têm fome”.
*Camila é um nome fictício. A pessoa pediu para não ser identificada
Foto de topo: entrada do Centro de Referência e Atendimento para imigrantes, em São Paulo (reprodução Google Street View)
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