Democracia é conceito em xeque, diz sociólogo
Para Augusto Perillo, violência de Estado e crises do capitalismo impõe limites a liberdades democráticas
Fabio Leon
8 min
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No Brasil, o Dia da Democracia é celebrado em 25 de outubro para lembrar o assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975. Militante do Partido Comunista Brasileiro, Herzog foi torturado e assassinado pela ditadura civil-militar-empresarial brasileira nas instalações do DOI-CODI, um departamento de investigações para “crimes de subversão” contra o regime, instalado no quartel-general do II Exército, no município de São Paulo, após ter se apresentado voluntariamente ao órgão para “prestar esclarecimentos”. Ele era diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura. Os militares tentaram forjar a sua morte, transformada em “suicídio por enforcamento”. Seu suplício e assassinato geraria uma das primeiras grandes crises institucionais no regime ditatorial culminando, dez anos depois, no processo de redemocratização do país.
Democracia também é uma das pautas de luta do cientista social Augusto Perillo. Nascido em Mesquita e criado em Nilópolis, Perillo foi estudante do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) – Campus Nilópolis, e participou das ocupações estudantis de 2016 contra as reformas neoliberais do então presidente Michel Temer. Foi ali, junto com outros alunos do Instituto, que ele fundou um coletivo de segurança pública, o “Nós por Nós”.
Hoje, Perillo se debruça sobre os efeitos da violência de Estado e da ação de grupos criminosos no cotidiano das periferias da Baixada Fluminense. Na avaliação dele, traficantes e milicianos impõem limites ao exercício da democracia nesses espaços. “O conceito de democracia, no Brasil, é polêmico. Nas periferias, que são reguladas pela morte, marcadas por falta de política e pelo controle eleitoral de grupos armados, é difícil dizer que há uma democracia”, afirma.
Recentemente, você fez registro de um tiroteio com armamento pesado na região de Nilópolis, algo que não acontecia com essa magnitude há algum tempo. O que está acontecendo na cidade?
Como diria o sociólogo José Cláudio Sousa Alves, Nilópolis é um milk shake do crime organizado. A cidade, que é minúscula, tem tráfico, milícia e contravenção na cidade. Como as velhas lideranças da família de contraventores que controlam a cidade há 60 anos estão morrendo, disputas estão sendo realizadas para controle de territórios para se ter controle eleitoral. Novos atores políticos estão surgindo e novas dinâmicas de disputa estão se apresentando na cidade. O aperfeiçoamento na atuação criminosa é tão grande que absolutamente tudo é motivo de disputa e capitalização: venda de terrenos, extorsão de comerciantes, venda de gás, Internet, de drogas, venda de licitações de órgãos públicos. Este cenário, em que tudo pode ser capitalizado de alguma forma por esses agentes do crime, que possuem representações políticas, tensiona cada vez mais o território, culminando em tiroteios, assaltos e etc.
A história da violência em Nilópolis é bem complexa para uma cidade tão pequena. Como é ser um pesquisador de segurança pública e viver no olho do furacão?
Para nossa sorte, os criminosos não leem os artigos que produzimos. Eu, como intelectual, represento muito pouca ameaça para essa estrutura gigantesca de poder. Acredito me arriscar mais enquanto militante, comunista, que quer discutir segurança pública e me insiro na realidade política do local. Mas ainda assim, trabalho com cautela porque a morte da Marielle Franco foi um recado muito claro para todos nós militantes políticos de esquerda.
Você faz parte do grupo de pesquisa do Observatório Fluminense, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) que mapeou as dinâmicas criminais dos desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense. O que você observou em relação às pesquisas realizadas em páginas do Facebook e jornais da Baixada Fluminense sobre o tema e a comunicação desses desaparecimentos em redes sociais?
No nosso mapeamento, fiquei responsável pelas páginas/Grupos do Facebook, junto a professora Nalayne Pinto. A metodologia foi a seguinte: escolhemos a página e o grupo mais curtido/seguido de cada município da Baixada, em seguida, no filtro do próprio Facebook, buscamos a palavra “desaparecido” e “desaparecida” no recorte temporal de 2016 a 2020. Em cada postagem eu verificava informações se a pessoa foi encontrada ou não. Caso a resposta fosse negativa, ela entrava como dado de pesquisa. Nessa pesquisa, foi interessante perceber que há grupos sociais que são mais oprimidos do que outros na divulgação do desaparecimento. Mulheres que somem podem ser taxadas de “prostitutas”, homens negros de “traficante” e etc. Os comentários dos usuários nessas postagens criam um ambiente pouco favorável, dependente do público, de busca de seu parente. A ideia que as redes sociais são neutras e democráticas não faz mais sentido.
Você acha que a forma como nos comunicamos na internet evidencia que ainda estamos em uma democracia em crise?
O conceito de democracia, no Brasil, é polêmico. Nas periferias, que são reguladas pela morte, marcadas por falta de política e pelo controle eleitoral de grupos armados, é difícil dizer que há uma democracia. Óbvio que democracia não é um sistema dado, pronto e acabado. É um processo de construção coletiva. Mas esse processo está muito atrasado em alguns lugares que são marginalizados pelo sistema político. A forma como nós nos comunicamos só evidencia, ao meu ver, que democracia é conceito em xeque pelas crises do capitalismo que cada vez mais se militariza e destrói as relações sociais.
Dizem que estamos vivendo a era do pós-bolsonarismo. Politicamente, isso faz sentido pra você?
É só pegar um uber e conversar com qualquer motorista que essa afirmação deixa de fazer sentido. Obviamente que enquanto momento político institucional, estamos no Pós Bolsonaro, mas no chão social, as ideias de extrema direita possuem muita reverberação. O Bolsonaro não teve quase 60 milhões de votos pela sua beleza, mas é que suas ideias dão um sentido para uma sociedade que vive a crise do trabalho, rompimento das relações sociais dentro das famílias (muito por causa da degeneração do mundo do trabalho), de uma crescente insegurança por causa de uma política de segurança pública que se baseia apenas em repressão de pobres, do avanço da moralidade evangélica e outros fatores que deixaram a esquerda sem solução para a vida dessas pessoas que são brutalizadas pelo capitalismo. Eu queria muito dizer que Bolsonaro é passado, mas enquanto sociólogo estaria mentindo. A extrema direita ainda pauta o debate público.
Conte como foi o episódio que culminou numa campanha para retirar o nome do filósofo Olavo de Carvalho de uma escola de Nilópolis. A situação avançou de que forma?
A Escola Municipal Coronel Benigno Ribeiro, tradicional em Nilópolis, onde meu pai estudou, inclusive, trocou de prédio. Um vereador de extrema direita se utilizou desse momento para aprovar, na Câmara Municipal, a mudança do nome do prédio vazio do Benigno para Prof. Olavo de Carvalho, já que em outras escolas que possuíam comunidade ativa, não aceitaram o nome do falecido negacionista. Fiz uma movimentação com a sociedade, um abaixo assinado com mais de 500 assinaturas para pressionar o prefeito da cidade a não autorizar a mudança. Até o momento, o que estamos sabendo é que o prefeito recuou graças a mobilização popular e ainda não assinou a mudança do nome. Uma escola ter o nome de alguém que era contra a escola e a ciência é algo inacreditável.
Recentemente, o Fórum Grita Baixada realizou um debate sobre como as esquerdas deveriam dialogar com a Baixada Fluminense. Houve falas que repetiram velhas problematizações sobre como trabalhar com as bases, que são violentadas cotidianamente em seus direitos, lidam com fome, desemprego, violência e pobreza. Como resultado, elas se individualizam e demonstram pouco interesse por dialogar ou defender pautas progressistas. É possível reverter esse cenário?
Sim, é possível. O problema não é sobre a possibilidade de reverter, mas se estamos dispostos a isso. Aí eu tenho uma descrença maior sobre esse cenário porque isso significaria, por exemplo, um enfrentamento a uma força política gigantesca que é a miliciana no Estado do Rio que vai do campo progressista ao campo conservador. Significaria tirar mandatos da Zona Sul, da zona de conforto, e dialogar com uma população marginalizada nas periferias. Significaria, também, pensar os partidos políticos enquanto instrumento de movimentos sociais, e não o contrário. O que acontece hoje é que movimentos sociais vão a reboque de governos. O horizonte da esquerda não deveria ser de cargos e mandatos apenas. Nós ganhamos as eleições presidenciais. Mas o que isso implica concretamente no avanço das nossas lutas? O Congresso é feito justamente pra que as pautas das trabalhadoras e trabalhadores não avancem. Esse poder que cito ainda está muito distante da gente.
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