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Direitos reprodutivos: o que são, e qual a situação no Brasil

Rafael Ciscati

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No final de agosto, o ministério da Saúde publicou uma portaria que estabeleceu novas regras para o acesso ao aborto no país. Hoje, a interrupção da gravidez é legal nos casos em que a gestação oferece riscos à saúde da mulher, quando é resultado de um estupro ou no caso de feto anencéfalo. 

O texto publicado pelo ministério cria uma série de novas exigências. Estabelece, por exemplo, que, antes de realizar o procedimento de interrupção da gravidez, os médicos que atenderem uma mulher vítima de estupro devem comunicar o crime à polícia. Hoje, cabe a ela decidir se quer ou não fazer a denúncia. Noutro ponto, a portaria afirma que a equipe médica deve oferecer à mulher a possibilidade de ver fotos do feto, antes da realização do procedimento. 

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Na avaliação de organizações sociais e especialistas em saúde, as novas normas arriscam dificultar o acesso ao aborto, mesmo naqueles poucos casos em que ele pode ser realizado dentro da lei. A portaria foi publicada na esteira do caso da menina capixaba que engravidou depois de ser violentada pelo tio por anos. Na ocasião, um grupo de religiosos tentou impedir a interrupção da gravidez, que fora autorizada pela justiça. 

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Os dois casos trouxeram de volta ao noticiário um conceito que é alvo de embates recorrentes: o dos direitos reprodutivos. 

Mas, o que são direitos reprodutivos?

Numa definição rápida, direitos sexuais e reprodutivos são aqueles que buscam permitir que as pessoas decidam, de maneira livre, a respeito de seus corpos e de sua sexualidade. Segundo explica a jurista Flávia Piovesan (num texto publicado em 2009), quando o assunto é reprodução, isso significa que toda pessoa deve ser livre para decidir como e quando ter filhos — ou para decidir não tê-los. Trata-se de uma decisão de caráter individual, na qual governos não devem interferir. 

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Segundo o Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA), os direitos sexuais e reprodutivos incluem, ainda:

  • O direito de cada pessoa a exercer sua sexualidade sem sofrer perseguições ou ameaças;
  • O direito de tomar decisões a respeito do próprio corpo
  • E o direito a ter acesso a informações de qualidade sobre saúde sexual e reprodutiva

Desde 1994, os direitos sexuais e reprodutivos são entendidos como direitos humanos fundamentais. Essa concepção tomou forma durante a Conferência sobre População e Desenvolvimento, realizada pelas Nações Unidas naquele ano, no Cairo, Egito.

O Brasil e outros 178 estados-membros da ONU participaram dos debates, que resultaram num Programa de Ação. Segundo esses documento, não cabe aos governos interferir em decisões individuais. Mas cabe a eles criar políticas públicas que protejam a autonomia dos indivíduos em relação a reprodução e sexualidade, e garantam que essas decisões individuais sejam tomadas de forma segura. 

São políticas no campo da saúde pública, por exemplo: como a garantia de acesso a acompanhamento pré-natal, ou a distribuição de contraceptivos. Elas podem estar no campo da educação: como a inclusão de tópicos relativos à educação sexual no currículo escolar. Ou mesmo no campo do trabalho, no caso de políticas que protejam trabalhadoras mães e gestantes.

Nessa seara, há ainda políticas há muito reivindicadas, mas alvo de oposição ferrenha: caso do acesso ao aborto seguro.

Segundo Plano de Ação do Cairo, essas políticas devem ter, como público alvo casais, adolescentes,  idosos, mulheres e homens solteiros. Essa definição foi também uma novidade — até ali, era comum que políticas relativas à reprodução e sexualidade fossem destinadas somente a pessoas casadas.

O entendimento, fortemente influenciado por valores religiosos, era de que sexo e reprodução eram assuntos para tratar dentro do matrimônio.

O Plano de Ação do Cairo foi resultado de anos de pressão promovida por ativistas e organizações da sociedade civil no mundo inteiro. Ao longo dos anos, essas demandas mudaram e se expandiram. Segundo explica a UNFPA: 

“Na década de 1970, os direitos reprodutivos estavam centrados nas reivindicações das mulheres pelo controle do próprio corpo, da fecundidade e atenção especial à saúde. Foi um período fortemente marcado pela luta para descriminalização do aborto e pelo acesso à contracepção. Posteriormente, nos anos 1980 e 1990, a agenda dos direitos reprodutivos incorporou a questão da concepção, do exercício da maternidade e das novas tecnologias reprodutivas.

Por fim, as questões até então defendidas pelas feministas ganham o fórum da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994). A questão demográfica é então deslocada para o âmbito dos direitos reprodutivos e do desenvolvimento. A noção de que os direitos reprodutivos fazem parte dos direitos humanos básicos e devem orientar as políticas relacionadas à população avançam e se firmam”

 

E o Brasil?

A Constituição Federal de 1988, considerada uma constituição progressista, relaciona uma série de direitos individuais e coletivos. Entre eles, inclui, no artigo 226, “o direito de decidir livremente e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos”. 

Desde o final dos anos 1980, o país avançou em questões importantes: ainda segundo o Fundo de Populações da ONU, a oferta de contraceptivos cresceu; a mortalidade materna caiu pela metade. 

O avanço, no entanto, está aquém do desejado. No caso da mortalidade materna, o índice atual — de 65 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos — continua bem acima da meta estabelecida pelo Brasil para 2030, quando o país quer chegar a 30 óbitos a cada 100 mil. 

Assusta, também, o número de meninas com menos de 14 anos grávidas: segundo a Gênero e Número, 21 mil crianças engravidaram no Brasil em 2018. Além disso, entre 2006 e 2015, algo entre 770 e 993 mulheres morreram vítimas de complicações decorrentes de abortos  — na maioria dos casos, realizados de maneira insegura e ilegal.

A estimativa consta em um trabalho realizado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e publicado no início desse ano. Segundo os pesquisadores, o número — aferido com base em dados do ministério da Saúde — representa uma fração da realidade. Como o aborto voluntário é ilegal no país, a subnotificação de casos é grande.

Dentre as mulheres que morrem, de acordo com a pesquisa, as vítimas mais comuns são negras, indígenas, menores de 14 anos e com menor escolaridade. 

Os índices vêm acompanhados pelo temor de que as políticas relativas à saúde sexual e reprodutiva passem por uma guinada conservadora. Em janeiro deste ano, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, chamou atenção ao defender campanhas sobre abstinência sexual entre as políticas para prevenção da gravidez na adolescência. 

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