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Em Pernambuco, grupo de mães garante registro de crianças pelos pais

Rafael Ciscati

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Já fazia algum tempo que a pernambucana Marli Márcia da Silva — ou Marli Maravilha, como os amigos a conhecem — escutava diferentes versões de uma mesma história. Sempre que ela visitava as penitenciárias do seu estado natal, alguém se queixava da dificuldade de fazer constar, na certidão de nascimento dos filhos, o nome e o sobrenome do pai. A reclamação partia, com frequência, das mães das crianças, cujos companheiros (ou ex-companheiros) estavam presos. Era algo que ela já esperava. A surpresa surgiu quando alguns dos homens com que Marli conversava nos presídios começaram a reclamar de problema parecido: “Eles queriam reconhecer seus filhos, mas os cartórios diziam ser impossível. Pensei: ‘tem algo de muito errado aí’”, lembra ela. 

Marli — uma mulher de cabelos muito negros e fala calma — é coordenadora da Associação Pernambucana de Mães Solteiras (Apemas), uma organização criada por ela em 1991 para tratar de um tema que, no Brasil de então, pouco ou nada se falava: o não reconhecimento paterno. Ele ocorre quando o pai de uma criança se recusa a registrar o filho em seu nome. Não há dados oficiais sobre o problema, mas números do Censo Escolar de 2011 sugerem que é grande: naquele ano, 5,5 milhões de crianças no país não tinham o nome do pai na certidão de nascimento (no caso desse dado, há situações em que o pai de fato é desconhecido).

Marli despertou para a questão quando, uma semana depois do nascimento de seu único filho, o pai da criança sumiu: numa conversa ríspida, disse que o menino estaria seguro se ficasse aos cuidados dela, mas que ele próprio não tinha a intenção de assumir a paternidade. Mãe solteira, Marli acabou sendo expulsa de casa pela família: “A sociedade me culpou por esse abandono”, diz. “Criei a Apemas para que outras mulheres não tivessem que passar pelo mesmo que eu”.

A associação trabalha em diversas frentes: ao longo dos anos, pressionou por mudanças na legislação, de modo a facilitar o registro tardio das crianças. Com a ajuda de advogados voluntários, orienta mães sobre como cobrar o reconhecimento paterno, e chega mesmo a acompanhar alguns casos na justiça. O trabalho nas prisões começou em 2011, quando Marli e suas companheiras decidiram passar dias nas portas de presídios da região metropolitana do Recife: “A gente passava o dia abordando as mulheres que aguardavam para visitar os presos, para orientá-las. Foi um trabalho longo”. O esforço chegou a virar um filme, lançado em 2014. Nele, Marli mostra como, com alguma frequência, o não-reconhecimento parental se repete por gerações: muitos dos homens presos também não conheciam seus pais.

Foi ao exibir o documentário para os presos que Marli se deu conta do problema que até ali ignorava: o dos homens que tinham aceitado reconhecer suas crianças mas que, estando na prisão, não conseguiam. Em teoria, o processo deveria ser simples — bastaria uma procuração assinado pelo pai: “Mas eles me contavam que os cartórios se recusavam a fazer os registros. Exigiam que as mães voltassem com testes de DNA”, diz Marli. “Mas, oras, não é o cartório quem tem de pedir o exame de DNA. É o pai, no caso de ter dúvida quanto a paternidade”.

De tanto ouvir a história se repetir, Marli decidiu assumir a briga. Com a ajuda de voluntários, entrou nos presídios em busca de quem quisesse registrar os filhos. Os documentos que a Apemas preenchia eram levados aos cartórios de Pernambuco: “Eles resistiam a fazer o registro. Pediam mesmo o exame de DNA, CPF, uma série de documentos. Mas a gente insistia”. Ao final de uma semana de trabalho, em 2016, 489 crianças tinham sido registradas. Marli cita o número sem muita vaidade: “O que precisamos, agora, é pensar nas próximas campanhas”, diz, pragmática. “Tem ainda muita gente precisando de orientação”.

Números expressivos se repetem na história da Apemas. A associação calcula que, nos últimos 27 anos, participou do reconhecimento de paternidade de mais de 50 mil crianças. Sua atuação se confunde com o amadurecimento da discussão sobre não-reconhecimento paterno no Brasil. Apesar da ausência de dados oficiais a respeito, estimativas sugerem que o país ocupa lugar de destaque num ranking desconfortável: o dos países onde o não reconhecimento parental é mais frequente. A socióloga Ana Liése Thurler, da Universidade de Brasília (Unb), chegou a essa conclusão depois de analisar registros de cartório em todo o Brasil. Segundo seus números, 20% dos brasileiros nascidos em 2006 não foram reconhecidos por seus pais. É bem mais que o número estimado para o mesmo período na França, por exemplo: “Por lá, onde há estatísticas oficiais sobre a questão, a taxa é de 2% das crianças”, diz a professora.

Os números indicam uma correlação entre o não reconhecimento paterno e a qualidade de vida da população. Segundo Ana Liese, quanto maior o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), menor o número de pais que se recusa a registrar seus filhos. As estatísticas também dão pistas sobre como foi formada a sociedade brasileira — nossas taxas de não-reconhecimento paterno altas, afirma a pesquisadora, são resultado de uma cultura que ainda entende a criação dos filhos como responsabilidade exclusiva da mãe: “Se o homem não quiser mesmo reconhecer a criança, vai tomando medidas protelatórias e não reconhece. Há uma desigualdade entre o tratamento dado ao reconhecimento da paternidade e à maternidade, que ainda é compulsória em nosso país”, afirma.

Nas últimas décadas, o quadro — ainda que grave — parece ter melhorado. Apenas na cidade de São Paulo, segundo dados da Associação dos Registradores Naturais do Estado (Arpen- SP), o número de certidões de nascimento sem o nome do pai caiu nos últimos anos: de quase 13 mil em 2015 para 333 em 2017.  Em parte, esse progresso ocorreu graças a mudanças estimuladas por Marli: em 2007, a Apemas conseguiu que fosse instituída a gratuidade do registro tardio de paternidade em Pernambuco. Antes disso, os cartórios cobravam mais de R$100,00 pelo documento. Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça expandiu a política para todo o país.

Mas o caminho de Marli foi tortuoso. Em 1991, depois de ser expulsa de casa com o filho nos braços, Marli peregrinou pela periferia do Recife, se revezando nas casas de amigos que concordavam em abrigá-la. Levava consigo a roupa do corpo e uma sacola de fraldas. Na época, chegou a cogitar o suicídio: “Eu me lembro de rezar para que meu filho morresse. Porque, assim, eu poderia morrer também”.

Acabou se estabelecendo no bairro de Torrões, onde abriu um bar com a irmã: “Ali, eu percebi que havia várias outras mulheres na mesma situação que eu. Decidi que precisava reuní-las”, diz Marli. “Eu ainda não sabia bem para que, mas precisava.”

Ninguém gostou da ideia. Abandonadas por seus companheiros, as mulheres da vizinhança não queriam falar sobre seus problemas e dores. Tampouco queriam que os nomes daqueles homens constassem no registro de nascimento de suas crianças: “Além disso, algumas pessoas diziam que éramos prostitutas. Que íamos nos reunir para fazer zona”, diz Marli.

Foram necessários meses de insistência até as mães aceitarem se encontrar. As crianças sem pai conhecido, dizia Marli, são tão perseguidas quanto suas mães. Sofrem com o preconceito na escola. Além disso, uma vez reconhecida a paternidade, é possível requerer o pagamento de pensão alimentícia: “Eu tive de convencê-las de que o reconhecimento da paternidade não deveria ser uma escolha delas. Porque era um direito das crianças”, conta.

Marli compreendia bem a resistência daquelas mulheres porque partilhava dos mesmos sentimentos. Ela própria demorou a se convencer de que seu filho deveria ter o nome do pai no registro de nascimento. Na certidão da criança, esse campo continuou em branco até que o menino completar 4 anos.

As primeiras reuniões da Apemas aconteceram num clube de dominó – uma sala comprida e apertada, onde o grupo dividia espaço com os homens que jogavam: “A gente tinha que falar baixinho. Por que discutia problemas pessoais”, conta ela.

Hoje, a associação tem 12 diretoras – contando com Marli. E outras oito voluntárias recorrentes: “O engraçado é que a maioria delas não foi mãe solteira, mas se identificou com a causa”, diz. Seus esforços tornaram a Apemas uma referência em Pernambuco. Ao ponto de, a partir deste ano, o estado celebrar o dia da paternidade responsável no 1 de outubro: “Justo na data em que a Apemas foi criada”, conta Marli, agora sim, sem disfarçar o orgulho.

O trabalho da Apemas ajudou a mudar a vida de milhares de crianças, e fez o mesmo pela vida da própria Marli. Hoje, já com quase 60 anos, ela demonstra disposição férrea para continuar o trabalho que iniciou há quase três décadas  —  acorda todos os dias antes das 5 da manhã e só volta para casa depois de o sol se pôr. Além do trabalho na Apemas, cursa  o sétimo período da faculdade de direito. O “maravilha” do apelido, que citamos ali no início da matéria, ela carrega desde que nasceu: “Minha mãe é que me chamava assim, quando eu era criança. Por que ela dizia que eu era a maravilha dela”, conta. A alcunha pegou. E não há quem discorde. Na página de Facebook da Apemas, um comentário resume bem a opinião de quem conhece Marli: “Fiquem atentos – a verdadeira mulher maravilha é negra”.

FOTOS: Fundo Brasil e arquivo pessoal

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