Em reunião com representantes da ONU, grupos alertam para tortura nas prisões
Rafael Ciscati
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Unidades prisionais superlotadas, com fornecimento de água intermitente e alimentação precária. Na noite da última terça-feira (1), organizações de defesa dos direitos humanos se reuniram com representantes do Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) da Organização das Nações Unidas para descrever aquilo que definiram como a “piora nas condições de aprisionamento” durante a pandemia de covid-19 no Brasil. Segundo as organizações, medidas adotadas durante a emergência sanitária deixaram pessoas privadas de liberdade vulneráveis a violações, e foram ineficazes para deter a propagação do vírus no sistema prisional. A situação foi agravada pelo entraves impostos à atuação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cujos peritos relatam dificuldades para trabalhar desde 2019.
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Essa é a terceira visita do SPT ao Brasil — o grupo veio ao país em 2011 e 2015. Nas ocasiões anteriores, os peritos da ONU emitiram um conjunto de recomendações destinadas a adequar o Brasil ao Protocolo Facultativo à Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. O documento estabelece que os países signatários — como o Brasil — serão visitados, regularmente, por órgãos independentes encarregados de prevenir que pessoas privadas de liberdade passem por situações de tortura. “Nenhuma das recomendações feitas à época foi plenamente adotada”, afirma Leonardo Santana, assessor de advocacy da Rede de Justiça Criminal, presente ao encontro. Criada em 2010, a Rede aglutina nove organizações que combatem o encarceramento em massa. Além dela, participaram da reunião grupos de familiares de pessoas presas, representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Coalizão Negra por Direitos.
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Santana explica que visitas do Subcomitê a nações signatárias não são, necessariamente, indicativo de um problema. Os peritos da ONU, no entanto, vieram ao país com uma pauta definida: entender os efeitos do decreto 9.831/2019, editado pelo presidente Jair Bolsonaro em junho do primeiro ano de governo.
Criticada por entidades de defesa dos direitos humanos, a medida cortou os salários dos 11 peritos que compõem o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Criado em 2007, o Mecanismo se tornou um dos principais órgãos anti-tortura do país. Tradicionalmente, se encarrega de fazer inspeções a unidades prisionais, locais de acolhimento de crianças e idosos, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas.
Desde o decreto presidencial, membros do Mecanismo apontam tentativas de cerceamento e perda de autonomia. Hoje, seus salários são pagos graças a uma decisão liminar da justiça federal, que suspendeu, em caráter provisório, os efeitos do decreto presidencial. “No momento, a situação do Mecanismo é precária. Equivale a estar na corda bamba”, afirma Santana. Há mais de dois anos, tramitam na Câmara dos Deputados projetos de decreto legislativo contra a medida do presidente.
Apesar de ter atuação independente, o Mecanismo recorre à estrutra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH) para viabilizar viagens e trabalhos burocráticos. Relatos dos peritos dão conta de tentativas de impedir a liberação de passagens de avião. Desde de 2019, o grupo viu diminuir o número de assessores e funcionários dedicados ao trabalho administrativo. “Hoje, em grande medida, somos nós que fazemos os papeis de peritos, de assessoria e de apoio administrativo”, informa um dos membros do grupo, que prefere não ser identificado.
Durante o encontro de terça-feira, o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Darcy Frigo, afirmou que a fragilização do Mecanismo entra no bojo de uma série de medidas adotadas pelo governo Bolsonaro para, segundo ele, limitar a participação social nas decisões do governo. “Logo no início deste governo, houve a edição de um decreto que afetou a participação social nas instâncias trazidas pela Constituição de 1988. A situação do MNPCT se situa nesse contexto, já que a atual gestão não prioriza a participação social nas políticas públicas e no monitoramento e aplicação de instrumentos internacionais de direitos humanos”, afirmou.
Membros da CNDH e da Coalização Negra por Direitos abordaram, ainda, o assassinato do imigrante congolês Moise Mugenyi Kabagambe, no Rio de Janeiro. O rapaz, de 24 anos, foi torturado e morto por funcionários de um quiosque onde trabalhava na Barra da Tijuca, depois de cobrar o pagamento de salários em atraso. Para os representantes da CNDH, o assassinato de Moise é reflexo de uma sociedade que naturalizou a tortura e a violência contra a população negra. “Essa violência trata corpos negros e periféricos como inimigos a serem combatidos”, afirmou Vívian Mendes, conselheira e coordenadora da Comissão dos Direitos da População em Situação de Privação de Liberdade do CNDH
Constrangimento internacional
A expectava das organizações sociais é de que os peritos da ONU encaminhem essas informações a autoridades e figuras políticas brasileiras. “Informamos a eles que somente nossa pressão, enquanto sociedade civil, nem sempre basta para convencer políticos da importância dessas pautas”, afirma Santana.
A vinda do grupo ao Brasil, segundo ele, foi comunicada às organizações de defesa os direitos humanos em finais de janeiro. Apesar de a visita ter uma pauta bem definida — a fragilização do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura — os grupos reunidos em Brasília na última terça-feira entenderam ser importante fornecer informações mais amplas sobre o contexto brasileiro. Em especial sobre o período que se seguiu ao início da pandemia de covid-19 quando, na avaliação da Rede de Justiça Criminal, os mecanismos de combate à tortura nas prisões brasileiras de deterioraram, e abusos se tornaram mais comuns: “A impossibilidade prática de distanciamento social em celas abarrotadas se somou à falta de acesso a equipamentos de proteção individual (EPIs) e à água. No segundo semestre de 2020, apenas seis estados (AL, CE, DF, MS, MG e SP) informaram fornecer água potável em tempo integral em suas unidades prisionais. Em março de 2021, cerca de 300 pessoas morreram, nos sistemas carcerário e socioeducativo por causa do coronavírus, alta de 190% nos óbitos em relação ao ano anterior“, afirmou a Rede em comunicado enviado a jornalistas.
Dentre os pedidos feitos pelo grupo, segundo Leonardo, há a demanda de que os membros do Subcomitê se reúnam com parlamentares e insistam para que as audiências de custódia por videoconferência sejam probidas. Audiências de custódia são o primeiro contato da pessoa presa em flagrante com o sistema de justiça. Uma de suas funções é apurar se a prisão foi realizada sem violar os direitos da pessoa detida. Instituída durante a pandemia de covid-19, a versão virtual das audiências é criticada por organizações da sociedade civil, segundo as quais a distância entre juiz e preso inviabiliza a apuração de casos de tortura.
Ao fim da passagem pelo Brasil, espera-se que os peritos da ONU emitam um novo conjunto de recomendações ao Estado brasileiro. Nas visitas anteriores, o grupo cobrou o combate à a superlotação nos presídios, e o estabelecimento de um programa de atendimento médico nas prisões, dentre outras medidas. “O peso disso é fazer com que o país passe por um constrangimento internacional, uma vez que ele terá de rebater o que for dito”, explica Santana.
Em reunião com representantes da ONU, grupos alertam para tortura nas prisões
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