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Em vídeo-manifesto, sobreviventes do cárcere defendem nova política de drogas

Rafael Ciscati

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Wendel Pimentel olhou decidido para a câmera e disse, firme: “Queremos que nenhuma droga seja utilizada para criminalizar pessoas”. Era manhã de um sábado quente, e Wendel  – um rapper de 32 anos e voz retumbante – estava à vontade sob os holofotes do Teatro de Contêiner Mungunzá, um espaço cultural no centro da capital paulista. Atrás da câmera, na tela iluminada de um monitor, ele acompanhava o texto a ser declamado: um manifesto reivindicando uma nova maneira de encarar o consumo de drogas que, semanas antes, Wendel escrevera em parceria com os colegas do projeto Sobreviventes. 

A iniciativa, uma realização do Centro de Convivência É de Lei, reuniu 10 pessoas que sobreviveram ao sistema prisional para discutir os percalços de quem passou pelo cárcere. Ao longo de uma série de encontros, o projeto tinha por objetivo ajudá-las a reorganizar suas vidas financeiras e profissionais, e formá-las para exigir respeito a seus direitos. A organização teve apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, mesma organização que mantém Brasil de Direitos.

O projeto era um desejo antigo do É de Lei. Criado há mais de 20 anos, o centro de convivência desenvolve atividades com pessoas que usam drogas e estão em situação de vulnerabilidade social. Trabalha a partir da perspectiva da redução de danos. A ideia parte do princípio de que a pessoa que consome drogas não precisa se abster de usá-las para ter acesso a cuidados de saúde e amparo social, de modo a conduzir a própria vida de forma satisfatória. Num prédio próximo da Praça da Sé, a instituição organiza oficinas de rap e teatro, rodas de conversas e palestras. “Com o passar  do tempo, percebemos que muitas das pessoas que participavam das atividades tinham passado pelo sistema carcerário”, conta Ana Luiza Uway, do É de Lei. “Entendemos que precisávamos realizar um trabalho com esse público”. 


No grupo do Sobreviventes, as histórias guardam certas semelhanças: em muitos casos, os participantes do projeto foram presos por portar pequenas quantidades de droga. “Foram acusados de tráfico, apesar de ser usuários”, conta Ana Luiza. Para a maioria, a passagem pela prisão teve efeitos duradouros. “Começamos o projeto pensando em oficinas de qualificação profissional. Logo, percebemos que a maioria já tinha uma profissão”, afirma Ana. Eram rappers, coreógrafos, costureiros. Os obstáculos que enfrentavam para encontrar emprego eram resultado de preconceito racial ou de gênero, e do estigma que marca quem sobreviveu ao cárcere. 

Foi esse o caso de Wendell. Criado pela tia e pela avó, o rapaz se viu sozinho aos 13 anos, depois que as  duas morreram. Foi morar nas ruas, migrou de abrigo em abrigo. Nesse meio de caminho, conheceu a cultura hip hop e passou a compor letras próprias. Descobriu o É de Lei já adulto, e depois de ter passado sete anos na prisão. “Quando saí da prisão, já sabia que as pessoas iriam me julgar, me negar oportunidades e emprego” diz o rapaz. “Decidi fechar meus olhos para a rejeição, e ergui minha voz contra o preconceito”. 

Os encontros do Projeto Sobreviventes, de que ele participou, duraram oito meses. Aconteciam sempre no primeiro sábado de cada mês. As reuniões eram divididas em duas partes. A primeira era dedicada à formação em direitos. Na sequência, pessoas convidadas pelo É de Lei compartilhavam suas vivências. 

Entre uma discussão e outra, a equipe do É de Lei acompanhava as histórias de cada um dos dez participantes. A intenção era identificar os obstáculos burocráticos que dificultavam a busca por emprego ou o acesso a serviços públicos. No caso das mulheres transexuais atendidas pelo projeto, por exemplo, uma demanda recorrente era a da retificação do nome social. 

O manifesto cobrando uma nova política de drogas foi gravado no último encontro, já no encerramento do projeto. Mas era uma ideia que acompanhava os participantes do Sobreviventes desde a primeira conversa. O texto foi construído de forma colaborativa, numa roda em que a ideia de uma pessoa era complementada pela sugestão da seguinte. 

O texto final, apresentado por dez vozes em vídeo, reúne uma lista de quereres que exigem, do poder público, as condições para que as pessoas vivam bem – e em liberdade. “Queremos o fim da guerra às drogas, que é também uma guerra às pessoas”, diz o grupo. A seguir, completa “Queremos que as pessoas sejam livres para ser o que quiserem ser”.

Por muito tempo, a baiana Viviane de Alcântara achou que a possibilidade de se tornar a pessoa que queria ser não era uma garantia, e sim um privilégio reservado a poucos. Nascida em Salvador, Viviane – uma mulher trans – deixou de frequentar a escola no início da adolescência. “Eu era muito discriminada”, lembra. Já adulta, veio para a cidade de São Paulo, onde vive há mais de duas décadas. Na capital paulista, Viviane viveu altos e baixos: fez programas, faxinou casas de famílias, casou-se, foi presa. Hoje, participa de um coletivo de costureiras, trabalho que garante seu sustento. As conversas durante o projeto Sobreviventes, conta ela, lhe deram tempo para pensar sobre a própria trajetória. E para perceber que ela, consumindo drogas ou não, tem direito a ter direitos. “Percebi que sou uma pessoa como todas as outras. Uma pessoa que tem seus problemas, mas que merece respeito”. 

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