Escritoras negras publicam contos inspirados em Quarto de Despejo
Rafael Ciscati
7 min
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Já era madrugada, em meados de junho do ano passado, quando a ativista Maria Teresa Ferreira — uma das colaboradoras mais assíduas da Brasil de Direitos — decidiu que escreveria uma carta a Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo. Àquela altura, Maria ainda não havia lido o livro em que Carolina narra seus dias na favela do Canindé, em São Paulo, onde morou com os filhos nos anos 1950. Como eram desconhecidas uma da outra, achou por bem se apresentar. “Sempre que preciso me apresentar fico pensando em todas as mulheres que estão dentro de mim e em todos os marcadores que carrego por ser um corpo negro feminino”, começou. “Me chamo Maria Teresa, tenho 43 anos, e um filho. Um menino negro chamado Davi, ele tem 10 anos. Sou lésbica. Sou preta. Sou trabalhadora. Milito no movimento feminino negro e na luta antirracista”.
A carta à escritora, falecida em 1977, era mais que um exercício de imaginação. A missiva fora proposta pela Festa Literária das Periferias (Flup), e era uma das etapas do projeto Flup Pensa — Narrativas Curtas: Uma revolução chamada Carolina. A iniciativa selecionou 180 escritoras e aspirantes, todas mulheres negras, que participaram de uma sequência de oficinas literárias. O processo culminou, em abril deste ano, na publicação de um livro de contos inspirados em Quarto de Despejo — Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras.
Maria Teresa aparece entre as autoras publicadas. Foi sua estreia na ficção. Uma mulher de riso solto e ideias rápidas, Maria sonhava ser escritora desde pequena. Com o passar dos anos, se especializou em produzir textos de opinião: análises sobre o cenário político brasileiro e sobre as relações raciais no país. Muitos deles publicados neste site. “O texto de não-ficção é onde me sinto mais confortável”, conta. Seus temas de predileção têm relação com sua história pessoal, marcada pela atuação em movimentos sociais e partidos políticos.
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A ideia de participar de um livro de contos, um terreno desconhecido, surgiu de maneira despretensiosa. “Achei o projeto tão bacana que quis participar, mas sem achar que seria selecionada”.
A carta para Carolina foi redigida como tantos outros textos: tarde da noite, quando a casa aquieta e o filho vai para a cama. São nesses recessos da madrugada que Maria encontra tempo para burilar as ideias. Geralmente, escreve no celular. Nas demais horas, quando faz dia claro, a Maria escritora cede lugar para as outras tantas Marias com que divide morada. Há a Maria mãe, “que frequentemente se sente em débito consigo mesma”, afirma. Há a Maria ativista do movimento negro. E há a Maria cozinheira, que se desdobra para produzir quitutes cuja venda sustenta a família (quem quiser acompanhar essa face pode seguir o instagram @deliciasdacasa377).
Recentemente, ela conta que ter descoberto que sua face escritora e sua face cozinheira têm pontos em comum. Cada qual a sua maneira, ambas alimentam: uma, alma; a outra, o corpo.
>>A liberdade de poder ser o que quiser
Na parte que lhe coube da coletânea de contos, Maria decidiu contar a história e Clara, uma mulher jovem que, num lapso, perde a lucidez. Foi sua forma, conta ela, de exorcizar um antigo medo: o de enlouquecer.
“Foram muitas as idealizações. Quisera ser artista. Quisera um grande amor. Quisera que os filhos fossem doutores. Quisera ter relacionamentos felizes. Quisera ter morado em outra realidade. Quisera não ter interrompido sua jornada tantas vezes”.
No depoimento abaixo, Maria conta a história de seu encontro com Carolina.
Capa do livro Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras
“A ideia de participar do projeto surgiu como a maioria das coisas que faço. Descobri as oficinas da Flup em um grupo de WhatsApp. Pensei: poxa, quero participar. Minha irmã diz que é essa minha postura em relação a quase tudo. Me proponho a fazer as coisas achando que elas não vão dar certo. No fim, elas dão. Mas tudo acontece de maneira muito despretenciosa.
Minhas pretensões estavam sob controle não porque meu desejo de participar fosse pouco. Mas porque eu sei que, como eu, há muitas mulheres que escrevem. Muitas mulheres negras que são grandes escritoras. No projeto da Flup, foram reunidas 180 mulheres negras escritoras. Participar desse conjunto era uma das coisas que me motivava.
Eu escrevo desde que me entendo por gente. E o sonho de quem escreve é o de, em algum momento, poder publicar. Melhor ainda se publicar num livro.
Minha primeira tarefa nesse processo foi escrever a carta para Carolina. O texto foi terapêutico. Foi como deixar desaguar o muito que tenho em mim.
Até aquele momento, não conhecia Carolina. Sabia sobre Quarto de Despejo quase tanto quanto a maioria das pessoas sabe, de ler na imprensa. Ao longo das oficinas — foram cerca de 20 encontros virtuais — ela me atravessou. Foi bonito e doloroso perceber como aquele livro, escrito há 60 anos, era atual. E foi igualmente bonito e doloroso perceber o quanto me pareço com Carolina.
Afinal, o que nos distingue? As oportunidades que tive e ela não. Não saí ilesa desse encontro. Saber que tive oportunidades que ela não teve é algo que aumenta minha responsabilidade. Que aumenta o peso daquilo que escrevo.
Essa sensação de familiaridade me acompanhou nas relações que estabeleci com as mulheres que participaram das oficinas comigo. No meu grupo, havia 18 mulheres. Em função da pandemia, tudo aconteceu à distância, por vídeo-conferência. Isso trouxe alguns benefícios: eliminada a restrição da distância, puderam participar mulheres de lugares muito diferentes.
Na minha turma, havia uma menina que morava em Paris. Havia mulheres que eram professoras universitárias, outras que cursavam mestrado ou doutorado. Eu era a única vinda do movimento social. Nossas histórias eram diversas, mas carregavam, todas, o peso do racismo. Como mulheres negras, somos atravessadas por ele em qualquer lugar. Na academia ou nos movimentos sociais. Carregamos histórias parecidas de opressão. Em virtude disso, havia um pouco de Carolina em cada uma.
A segunda tarefa que nos foi proposta, a de escrever um conto de ficção, foi exigência do nosso orientador. Ele falou: ‘quero uma ficção’. Eu respondi: ‘pois eu não quero mais brincar disso’. Eu não fazia ideia de como começar. Sempre escrevi, mas sempre escrevi textos calcados a realidade. Colunas de opinião, textos de análise. As vezes, me aventuro na escrita de um poema.
Sair da minha zona de conforto foi difícil. Exigiu muito pensar. De tanto matutar, uma hora percebi que sabia que história deveria contar. Clara, minha personagem, surgiu para mim como que pronta.
Clara é uma mulher jovem, de família abastada e que, um dia, perde a sanidade. Sua história conta um lado da minha militância como ativista do movimento antimanicomial. Representa também um lado meu que teme enlouquecer. Gostei de criar Clara. Contar sua história foi uma maneira que encontrei de exorcizar um medo.
Para além da minha conquista individual, a publicação do Carolinas importa pelo que o livro representa no seu conjunto. Quando a gente pensa em literatura, raramente pensa em mulheres negras. Não é essa a imagem que se faz de um escritor consagrado. Por ali, naquele livro, você encontra 180 autoras negras que escreveram literatura de ficção conduzidas pelos escritos de Carolina Maria de Jesus.
Publicar o conto me fez bem. Meu ego saiu lustradinho dessa experiência. Mostrei a mim mesma que posso ocupar outros espaços além da minha zona de conforto. Mas o poder desse livro está no coletivo”.
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