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Grupos criam rodas de conversas voltadas a mulheres sáficas

Com a intenção de criar espaços seguros para mulheres sáficas —lésbicas e bissexuais —, organizações incentivam trocas de experiências e desenvolvem atividades em conjunto

Bárbara Diamante *

8 min

Com a intenção de criar espaços seguros para mulheres sáficas, organizações incentivam trocas de experiências e desenvolvem atividades em conjunto para mulheres sáficas

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Desde cedo, meninas são criadas com a ideia de que devem se relacionar com homens. A heteronormatividade faz com que qualquer outra experiência que fuja desse padrão pareça errada ou incompleta. Para evitar fugir das normas, parte dessas garotas deixa de se relacionar com pessoas do mesmo sexo ou vive relações heterossexuais, ainda que não sintam atração. Naína Tumelero foi uma dessas pessoas.

Seu processo de autoconhecimento foi longo. Por muito tempo se reconheceu como mulher bissexual, tendo tardiamente compreendido sua lesbianidade. Por isso, se sentia “atrasada” ou mesmo “insuficiente”.

Em outubro de 2023, se mudou para Curitiba. No começo, estava um pouco perdida em como construir novas amizades. “Me movimentava bastante para conhecer pessoas; principalmente mulheres lésbicas”. Manter por perto mulheres parecidas com ela se tornou algo muito importante. “Eu sentia falta de trocas significativas e validação”, conta.

Pouco depois de ter chegado à cidade paranaense, conheceu Marina Pereira. As duas estavam no Enca.sapas – evento de sinuca direcionado a lésbicas – quando se viram pela primeira vez. Naína gostou bastante da experiência e manteve contato com a colega. Achava interessante a ideia de mulheres sáficas se reunirem, apesar de não encontrar grupos voltados a isso com tanta frequência. Sempre que descobria novas iniciativas do tipo, se envolvia. Foi assim que se tornou mediadora de encontros em um desses coletivos: o Lesbos.

Marina (direita) apresentou o Vozes Sáficas à Naína (esquerda). As duas se conheceram em um evento lésbico. Foto: arquivo pessoal

Marina (direita) apresentou o Vozes Sáficas à Naína (esquerda). As duas se conheceram em um evento lésbico. Foto: arquivo pessoal

 

No final de 2024, Marina lhe fez um convite: que tal se ela participasse de uma reunião do Vozes Sáficas? O projeto, criado pela coordenação nacional de mulheres lésbicas da Aliança Nacional LGBTI+ e pelo Grupo Dignidade, reúne mulheres que se sentem atraídas por mulheres, para que possam ter momentos de troca de vivências. Naína se interessou e resolveu comparecer. Desde então, passou a frequentar as reuniões mensais.

Surgimento de grupos de acolhimento mais específicos

O projeto Vozes Sáficas foi criado para que mulheres que se atraem por mulheres possam compartilhar experiências e acolham umas às outras. A ideia é que seja um ambiente seguro e que permita a construção de uma rede de apoio, para aquelas que se mudaram de cidade e/ou que ainda não têm vínculos muito bem construídos com mulheres da comunidade.

A iniciativa surgiu a partir da percepção da equipe do Grupo Dignidade. Após ouvir relatos, sentiram a necessidade de criar um “local de representatividade e acolhimento” voltado especialmente para mulheres lésbicas ou bissexuais. Mulheres “sáficas” — o termo faz referência à poeta Safo, que viveu na ilha grega de Lesbos por volta do século VII antes de Cristo. As rodas de conversa contam com mulheres cis e trans, e também acolhem pessoas de diversas idades. Naína encara como um ponto positivo: “é um espaço bem múltiplo”.

Mediados por Aghata Coelho, com o apoio de Maria Strapasson e Emanuely Girotto, os encontros variam de uma hora e meia a duas horas de duração, sempre com alguma confraternização no final. Naína gosta desses momentos. “A gente sai, vai para um bar, ocupa um espaço, se diverte”. Ela percebeu que conforme comparece às reuniões, os laços com as outras integrantes se estreitam. 

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Agatha explica que um dos objetivos é construir os encontros de forma coletiva. Tanto os assuntos abordados, quanto as melhores datas para os encontros, são decididos pelas próprias integrantes. Até o momento já abordaram temas como primeiras experiências e micro agressões. 

Além das rodas de conversa, o projeto organiza eventos em que as participantes podem socializar e ter momentos de descontração. Para celebrar o final do ano de 2024, frequentaram um karaokê, em conjunto com o Clube Lesbos. A reunião mais recente também foi colaborativa com a outra organização. Juntas, realizaram um sarau carnavalesco.

Foto: arquivo Grupo Dignidade

Foto: arquivo Grupo Dignidade

 

Foto: arquivo Grupo Dignidade

Foto: arquivo Grupo Dignidade

 

A reunião mais recente do grupo aconteceu em 22/02/25. Nesse dia, integrantes do Vozes Sáficas e do Clube Lesbos realizaram um sarau. (Foto: arquivo Grupo Dignidade)

A reunião mais recente do grupo aconteceu em 22/02/25. Nesse dia, integrantes do Vozes Sáficas e do Clube Lesbos realizaram um sarau. (Foto: arquivo Grupo Dignidade)

Rede de apoio é importante para o bem estar

A importância de grupos como o Vozes Sáficas ganha ainda mais relevo quando considerada a dimensão da saúde mental: hoje, a prevalência de transtornos de ansiedade é maior entre mulheres lésbicas e bissexuais. Isso ocorre, muitas vezes, por conta de fatores sociais, como a violência de gênero. 

Foi o que concluiu uma análise conduzida em 2010 por pesquisadores das universidades de Michigan e Ilinois, nos Estados Unidos. O grupo se debruçou sobre os dados coletados pela “Pesquisa Epidemiológica Nacional acerca do uso de álcool e condições relacionadas” (Nesarc, na sigla em inglês) — uma imensa pesquisa patrocinada pelo governo americano e que entrevistou mais de 34 mil pessoas acima dos 20 anos de idade. Concluiu que 18,6% dos homens e 31,3% das mulheres heterossexuais apresentavam sintomas de ansiedade.

O quadro era muito mais preocupante entre mulheres sáficas. Segundo o levantamento, 40,8% das mulheres lésbicas foram diagnosticadas com ansiedade. A prevalência era ainda maior entre as bissexuais: mais da metade (57,8%) sofria com o transtorno.

Parte das mulheres sáficas é rejeitada pela família, no trabalho, nas igrejas, no âmbito acadêmico e, até mesmo, em unidades de saúde. O I LesboCenso Nacional: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil indicou que 31,69% não são assumidas em todos os lugares, principalmente no ambiente familiar. A apreensão é compreensível, uma vez que 75,13% dos agentes de violência contra lésbicas eram pessoas conhecidas. 

Não ter espaços em que se sintam confortáveis para se expressar é um obstáculo para a construção de uma rede de apoio. O problema parece maior em cidades pequenas. “Muitas vezes elas são sozinhas. As vezes ela é a única [assumida] na cidade ou só conhece a parceira” explica Isabelle Paiva, psicóloga, especialista em atendimentos voltados a mulheres e pessoas LGBTQIA+. Ouvir e compartilhar experiências é essencial para combater a solidão. “É extremamente importante conhecer pessoas semelhantes e entender que você não está sozinho. Quando você tem aquele sentimento e acha que só você está passando por aquilo, te dá a sensação de que há algo errado”, completa.

Ao observar grupos de acolhimento para pessoas LGBTQIA+, Isabelle percebeu que, geralmente, eles não são subdivididos de acordo com a sexualidade das pessoas participantes. Nem sempre isso é bom: em casos assim, os grupos correm o risco de não atenderem às especificidades dos frequentadores. Isabelle ressalta também que a comunidade ainda é bastante machista e não tem tanta abertura para o espaço feminino. A tendência é que o foco desses encontros quase sempre se volte à vivência de homens.

O silenciamento de vozes femininas gera falta de identificação e de engajamento por parte das sáficas que, com o tempo, não comparecem mais às reuniões. Para a psicóloga, é importante que sejam criados grupos mais específicos. “Cada pessoa LGBT tem vivências muito diferentes. O jeito que mulheres sáficas se relacionam é bem diferente dos homens gays, por exemplo”. Quanto mais específicos os grupos, mais as participantes se identificam. E quanto maior a sensação de pertencimento, mais elas se mantêm nesses grupos. Assim, os vínculos tendem a ser mais fortes e persistirem ao longo da vida.

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Iniciativas como o Vozes Sáficas também existem em outros estados do país. Um exemplo é o Afeto Sapatão. Criado em setembro de 2023, o projeto conta com 145 membros de várias regiões do Distrito Federal. A fundadora Nathalia Oliveira define o grupo como “espaço de acolhimento para as pessoas se sentirem à vontade para conversar sobre várias coisas”.

As mulheres que estão nele começaram a interagir por conta de um outro projeto, o Bike Sapatão. A intenção de criar um novo grupo foi reunir mulheres lésbicas em outros ambientes, além da atividade física. No início conversavam por whatsapp e atualmente realizam encontros periódicos, de acordo com a disponibilidade das participantes. 

 

Juntas, algumas das participantes assistiram o filme sáfico Love Lies Bleeding no Cine Cultura Liberty Mall. (Foto: arquivo Afeto Sapatão)

Juntas, algumas das participantes assistiram o filme sáfico Love Lies Bleeding no Cine Cultura Liberty Mall. (Foto: arquivo Afeto Sapatão)

 

Membros do Afeto Sapatão reunidas no Parque da Cidade de Brasília. (Foto: arquivo Afeto Sapatão)

Membros do Afeto Sapatão reunidas no Parque da Cidade de Brasília. (Foto: arquivo Afeto Sapatão)

 

Antes do projeto, muitas das mulheres ali não conheciam outras mulheres sáficas, ou haviam se mudado recentemente e não tinham companhia. Nathalia notou avanços desde o começo. “Antes, elas se viam sozinhas. Hoje, essas mesmas pessoas formaram seus próprios grupinhos e têm suas próprias redes de afeto. É algo muito bonito e potente. As relações foram se construindo lentamente, nas sutilezas”.

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