Entrevista


LGBTQIA+

Pioneira do movimento trans, a dirigente do Fórum Nacional de de Travestis e Transexuais Negras e Negros quer pressionar partidos para que apoiem candidates transexuais na disputa

Jovanna Cardoso: pessoas trans e travestis precisam ocupar espaço na política

LGBTQIA+

Jovanna Cardoso: pessoas trans e travestis precisam ocupar espaço na política

Pioneira do movimento trans, a dirigente do Fórum Nacional de de Travestis e Transexuais Negras e Negros quer pressionar partidos para que apoiem candidates transexuais na disputa

Escrito em 12 de Abril 2022 por
Rafael Ciscati

A baiana Jovanna Cardoso tinha 20 anos e estava na fila do cinema, à espera da próxima sessão, quando foi presa. Pioneira do movimento trans no Brasil, Jovanna vivia na mira da polícia, simplesmente por ser travesti.  “Na época, no final dos anos 1970, as pessoas aplaudiam quando a polícia batia em travestis na rua”, conta. A violência daquela prisão foi o estopim para que ela e algumas colegas criassem a Associação das Damas da Noite do Espírito Santo: uma organização dedicada a promover os direitos de prostitutas e mulheres transexuais. 

Foi a primeira experiência de Jovanna como ativista. Anos depois, em 1992, ela criaria a Associação de Travesti e Liberados (Astral), o primeiro grupo devotado aos direitos das pessoas trans no Brasil. Mas ela conta que sempre teve o espírito aguerrido. “Saí de casa aos 13 anos para me tornar a mulher que eu tinha o direito de ser”. 

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Hoje, aos 62 anos, Jovanna Cardoso — ou Jovanna Baby, como é conhecida — dirige o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros. Desde 2014, o grupo alia discussões sobre identidade de gênero à questão racial. E pressiona o poder público para que desenvolva políticas capazes de garantir dignidade à população trans negra. 

Na avaliação dela, o Brasil mudou pouco desde seu ingresso na militância, há mais de 40 anos. “O Brasil segue transfóbico. Somos o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo”, lembra ela. Mas mudaram muito, ou se expandiram, as pautas do movimento trans, que ela ajudou a construir. “Nos anos 1970, nos preocupávamos com a violência policial e o acesso à saúde. Hoje, pensamos em empregabilidade. Na possibilidade de ocupar espaços de poder”. 

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Essa última questão — a presença de pessoas trans em espaços de decisão— deve ser um dos focos do trabalho do Fonatrans em 2022. A organização pretende incentivar candidaturas, e pressionar as legendas para que apoiem candidatos trans que se lançarem na disputa.  “É preciso que essas pessoas tenham acesso, por exemplo, a tempo de TV. Precisam poder contar com a estrutura dos partidos, para se viabilizar”. 

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Brasil de Direitos: Como você se tornou ativista?
Jovanna Cardoso: 
Saí da casa dos meus pais aos 13 anos, para descobrir minha identidade. Era muito discriminada. Sou do extremo sul da Bahia, por isso fui para Vitória, capital do Espírito Santo. Lá, não cheguei a morar na rua – mas dormi na rua em mais de uma ocasião. Lá, fui presa diversas vezes. Era comum que a polícia fizesse operações para prender as mulheres prostitutas e as mulheres trans, que também se prostituíam. Éramos enquadradas na lei da Vadiagem, que já não existe. Fui presa, pela última vez, quando tinha 20 anos. Na ocasião, eu não estava me prostituindo. Esperava na fila do cinema para assistir a um filme. Fui presa e logo liberada, mas me injuriei tanto com essa última prisão que eu e outra companheira decidimos que precisávamos fazer alguma coisa.Decidimos nos orientar com um advogado. Ele me disse algo que carrego até hoje: ‘vai ser muito fácil a polícia prender Jovanna, mesmo que você conheça seus direitos. Mas, várias de vocês juntas, se articulando por seus direitos, eles não vão conseguir prender. 

Foi ali que vocês criaram a Associação de Damas da Noite?
Sim. Foi a primeira associação do gênero a reunir prostitutas, mulheres cis e travestis. Esse impulso de organização social surgiu a partir da necessidade de encerrar esse ciclo de violência policial. A polícia nos perseguia. E, até os anos 2000, essa perseguição continuou intensa. Precisávamos pôr fim àquela violência transfóbica. Fizemos barulho, chamamos os jornais. A partir dali, o governo passou a dialogar conosco. Isso foi no final de 1979. 

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Antes disso, você já havia participado de movimentos sociais, ou de processos de formação política?
Eu acho que nasci com esse espírito combativo. Lembro de, adolescente, ver a Rogéria na televisão e pensar: essa mulher deve saber lutar pelos direitos dela. E eu também queria ter o direito de ser a mulher que eu sou. Eu não fui qualificada pela academia, pelas escolas. Fui formada pela vida. Hoje, aos 58 anos, digo com orgulho que consegui estudar. Estou na pós-graduação em gestão de políticas públicas. Mas, lá nos anos 1970, queria mostrar que ser travesti, que ser prostituta não é crime. 

Na época, sua principal pauta era o combate à violência policial?
Era a nossa principal preocupação. Na época, nem falávamos sobre acesso ao mercado de trabalho. Achávamos que as empresas tinham o direito de escolher seus funcionários, e que elas nunca empregariam uma travesti. Claro que não concordávamos com isso, mas não havia fiscalização, não havia punição. Para nós, segurança e saúde eram as questões primordiais. Nos anos 1970 e 1980, travestis e prostitutas não iam nem aos postos de saúde por que não eram atendidas. Lembro que, em 1981, em uma audiência com o governador do Espírito Santo, conseguimos abrir as portas dos Centros Municipais de Saúde a essas populações. Desde então, as pautas do movimento se diversificaram. Hoje, falamos sobre mercado de trabalho, presença em espaços de poder, participação na política institucional. 

Essa diversificação é sinal de avanço?
Eu acho que o Brasil não mudou muito, mas alguns segmentos sociais mudaram. Digo isso por que, nos últimos anos, elegemos pessoas trans a cargos no legislativo. Mas essas pessoas são ameaçadas, e encontram dificuldade para legislar. Houve, isso sim, a pressão de certos segmentos. Mas o Brasil continua misógino, sexista, transfóbico. Somos o país que mais mata pessoas trans e travestis. Nos anos 1980, as pessoas aplaudiam quando a polícia batia em uma travesti na rua. Hoje, não aplaudem. Mas a polícia ainda bate. 

Essas mulheres sofrem ameaças mas foram eleitas. Não é um sinal de avanço cultural?
Acho um erro pensar que o Brasil mudou. As conquistas que temos são muito frágeis. Aqui, me refiro a toda a população LGBTQIA+. Há uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que equipara a LGBTfobia ao crime de racismo. Mas não há leis sobre isso. Não temos políticas de Estado que protejam a população LGBTQIA+.

Em 2014, você criou o Fonatrans, que incorpora a discussão racial à defesa da população trans e travesti. Por que esse recorte é importante?
Nós considerávamos o movimento negro muito heteronormativo. Isso historicamente. Embora tenham existido instituições atentas à pauta LGBTQIA+.  ele era transfóbico, não abria espaço para essas discussões. É um cenário que vem mudando. Hoje, o Fonatrans compõe a Coalizão Negra por Direitos, e temos um espaço de fala grandioso ali. Outro motivo é a branquitude do movimento LGBTQIA+. A maioria das suas lideranças eram, e ainda são, pessoas brancas. Isso nos incomodava. Eu sempre entendi que é essencial discutir raça e cor dentro do movimento. Afinal, pessoas negras são maioria da população no Brasil. Decidi que era preciso nos organizarmos para fazer isso. 

Você já ocupou cargos na administração pública. Pensa sair candidata a cargos eletivos?
Fui gestora da Coordenadoria Municipal de Direitos Humanos e Livre Orientação Sexual em Picos, no Piauí. Fomos o segundo município do interior do Brasil a ter um Plano Plurianual pensado para a população LGBTQIA+, que eu implantei na minha gestão. Depois disso, fui ainda assessora da deputada estadual Flora Izabel (PT-PI). Não achei que esses espaços pudessem ser ocupados por mim, eu não vislumbrava essa possibilidade. Foi importante. Mas não pretendo me candidatar. Tenho medo de sair vereadora e não conseguir fazer as mudanças de que preciso, por causa de embates com o restante da Câmara. Além disso, vivo em uma cidade no interior do Piauí. Exercer essa minha coragem de ativista, brigar com a sociedade e a classe política pode ser perigoso. A maioria dos vereadores aqui é de fazendeiros, donos das suas armas, das suas terras e de seus egos.  Mas eu penso que nós precisamos ocupar esses espaços. Porque ninguém consegue fazer a nossa fala. O nosso lugar de fala, ninguém substitui.O Fonatrans apoia as candidaturas e incentiva as meninas a sair candidatas. 

Como é feito esse apoio do Fonatrans às candidaturas?
Instituímos uma equipe que vai pressionar os partidos para que essas meninas não sejam só candidatas por ser candidatas. Queremos que os partidos assumam essas candidaturas. É preciso que elas tenham acesso, por exemplo, a tempo de TV. Precisam poder contar com a estrutura dos partidos, para se viabilizar. Hoje, os partidos levam as pessoas a ser candidatas só para dar a impressão, para a sociedade, de que há diversidade. Vamos incidir sobre os partidos para que não seja assim. 
 

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