Livro discute avanços ( e permanências) nas relações raciais no Brasil
Em “Denegrir: educação e relações raciais”, George Oliveira reúne textos publicados ao longo de uma década. Segundo autor, Lei de Cotas contribuiu para mudança cultural no país
Rafael Ciscati
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Quando era criança, o ativista George Oliveira costumava ouvir um conselho da mãe: “Quando se sentar, coloque os pés embaixo do banco”. O dito servia como uma espécie de advertência. Era a forma encontrada pela mãe de Oliveira, uma mulher negra, de dizer ao filho que ele deveria se resguardar. Na Salvador dos anos 1990, passar despercebido era uma tática importante à pessoa negra que quisesse evitar agressões racistas. “Minha mãe não teve acesso à educação formal. Essa era a maneira simples que ela encontrava de falar sobre relações raciais”, conta Oliveira. “Colocar os pés debaixo do banco significa não ir direto para o enfrentamento”.
Especialista em educação e ativista do movimento negro há duas décadas, Oliveira — colaborador frequente da Brasil de Direitos — buscou na escrita sua forma de “tirar os pés debaixo do banco” e partir para o embate. No recém lançado Denegrir: educação e relações raciais (Editora Telha, 174 páginas) , reuniu um conjunto de textos publicados por ele na imprensa ao longo da última década. Os escritos revelam o olhar do autor sobre as questões de seu tempo: da promulgação da Lei de Cotas em 2012 aos protestos que se seguiram ao assassinato do americano George Floyd em 2020. O título do volume brinca com os sentidos de um verbo que, já há algum tempo, vem assumindo novos significados: “Uso denegrir no sentido de tornar negro. No sentido de reconhecer sua negritude”, conta Oliveira. “Quero que as pessoas saiam dessa leitura um pouco mais denegridas”.
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De certo modo, o livro conta também a história de como Oliveira “denegriu-se”. Nascido em uma família humilde de Salvador, Oliveira diz que viveu até a idade adulta sem entender que era negro. “Eu não tenho a pele clara, jamais poderia passar por branco. Mas essa não foi uma questão para mim até os meus 22 anos”. Seu ponto de virada foi o ingresso no curso pré-vestibular do Instituto Steve Biko. Criado em 1992 na capital baiana, o instituto promove ações de inclusão social por meio da educação para a comunidade negra. O ano era 2001 e, nas memórias de Oliveira, “parece que tudo aconteceu ao mesmo tempo”.
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Aquele foi o ano em que dois aviões se chocaram contra as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York. Foi, também, o ano em que os países membros da Organização das Nações Unidas se reuniram em Durban, na África do Sul, para discutir o combate ao racismo. Em Salvador, 2001 foi o ano em que os estudantes do Steve Biko, Oliveira entre eles, se mobilizaram para cobrar que a Universidade Federal da Bahia (UFBA) isentasse estudantes negros e de baixa renda da taxa de inscrição no vestibular. Na época, quem quisesse prestar o concurso deveria desembolsar R$75,00 — o equivalente a R$250,00 em valores atuais. Na ocasião, o reitor da universidade respondeu aos protestos afirmando que quem não tivesse dinheiro para pagar pela inscrição também não teria fundos para se manter no curso.
A briga pela democratização do acesso ao ensino superior marcaria a trajetória do autor dali por diante. E dominaria, também , parte do debate travado pelo movimento negro no Brasil. Em 2001, quando Oliveira ingressou no pré-vestibular do Steve Biko, as universidades públicas brasileiras era ambientes majoritariamente brancos. Em 2019, 18 anos depois, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) diagnosticou, pela primeira vez, uma virada — a partir daquele ano, alunos negros passaram a representar a maioria (50,3%) dos matriculados em instituições federais. “As cotas fizeram mais do que ampliar o acesso à universidade” diz Oliveira. ” Elas ampliaram também a pauta de pesquisa. Porque os estudantes cotistas têm preocupações diferentes, e pesquisam temas diferentes daqueles temas eleitos pelos estudantes brancos”, diz Oliveira.
Não foram só as instituições que mudaram nesses últimos dez anos, acredita ele. A atuação do movimento negro trouxe mudanças culturais e avançou sobre a consciência das pessoas: “Hoje, as pessoas têm mais acesso à informação. E há mais gente que se orgulha de ser negra”.
Ao mesmo tempo em que destaca conquistas, o livro revela certa preocupação com o futuro. Há algum temor quanto ao destino da Lei de Cotas, que deve ser revista em 2022. “Essa foi uma conquista que nunca nos permitiu dormir tranquilamente. Ela passou pela Câmara e pelo Senado, foi sancionada. O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou sua constitucionalidade. Mas sempre esteve sob ameaça”, diz ele. Num dos textos do volume, Oliveira lista 5 razões que justificam a manutenção das cotas para estudantes negros.
O olhar em retrospecto deixa no ar, ainda , a impressão de que, se houve progresso, muita coisa permaneceu inalterada. Embora traga memórias de infância, o texto em que a mãe de Oliveira o aconselha a “esconder os pés” foi escrito em 2021. Foi motivado por um vídeo que cruzou o autor nas redes sociais, em que mães de meninos negros relatam o medo de que seus filhos acabem vítimas do racismo. “Vejo meu filho dançar, fazendo movimentos bruscos, e penso que um dia vou ter de dizer para ele: ‘não faça movimentos bruscos’”, diz uma das mulheres, repetindo uma variação daquele mesmo conselho ouvido por Oliveira há mais de 20 anos. “As mães negras ensinam seus filhos a se proteger do racismo. Ensinam que o adolescente deve sempre sair de casa com um documento. Ensinam que não se deve correr da polícia”, diz Oliveira. “Os adolescente brancos jamais se preocupam com isso”.
Ao escrever, Oliveira diz querer contribuir para mudar essa realidade. “A escola é um lugar fundamental para avançarmos na discussão sobre relações raciais” opina. “Com o livro, quero ajudar professores a se preparar para esse debate”.
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