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MEC teme ensino de gênero e diversidade sexual nas escolas, dizem especialistas

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foto de topo: Agência Brasil

Por Jess Carvalho, da Agência Diadorim

Após quatro anos de intensa perseguição ao ensino para a diversidade nas escolas brasileiras, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), a efetivação do direito a uma educação inclusiva parece um ideal longe de ser alcançado, avaliam especialistas ouvidos pela Diadorim. Isso porque o MEC (Ministério da Educação) no governo Lula (PT), sob gestão de Camilo Santana (PT), ainda não apresentou ações concretas sobre o tema e o país segue sem uma política nacional de educação eficaz no combate à LGBTfobia.

De acordo com o coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Marco Prado, a atual gestão do MEC ainda não apresentou qualquer avanço significativo, que possa ser comprovado, em torno da pauta. “Muito pelo contrário, a institucionalização do silenciamento, a covardia do medo instalado e da autocensura nem foram ainda objetos de discussão e enfrentamento por parte do ministério atual”, denuncia o professor.

Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) e integrante da Rede Malala, reconhece que há algum esforço de reconstrução de políticas e programas destruídos na gestão anterior, bem como pessoas comprometidas com as agendas de sexualidade e gênero atuando no MEC, mas o medo paralisa. 

“Há muita insegurança e uma forte ambiguidade, em decorrência — em grande parte — do medo dos impactos eleitorais e da configuração política do Congresso Nacional, com predomínio de grupos de direita e extrema-direita. O medo ultrapassa o MEC e está presente no núcleo duro do governo federal”, diz ela.

A presidenta do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, Janaina Oliveira, que é filiada ao PT, se queixa da falta de abertura do MEC, que dialoga com o Conselho apenas por meio de um conselheiro que compõe a equipe da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão). 

“Ainda não fomos recebidas por outras instâncias e lamentamos, uma vez que as violências e violações de direitos das pessoas LGBTQIA+ seguem nas escolas”, comenta.

O fantasma da “ideologia de gênero”

A pesquisa “Educação, Direitos e Valores”, promovida pela Ação Educativa, junto com Cenpec e Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, em 2022, revela que a maior parte da população brasileira entende que é fundamental abordar temas como gênero e sexualidade nas escolas. Para 82% das pessoas entrevistadas, a escola deve promover o direito de as pessoas viverem livremente sua sexualidade, sejam elas heterossexuais ou LGBTQIA+.

Para os especialistas, esse resultado é fruto de um longo histórico de educação sexual, de gênero e diversidade sexual nas políticas educacionais brasileiras, sucesso que vem sendo interrompido pela ofensiva antigênero que começou a se espalhar pelo país após os anos 2000, a partir da ascensão do movimento Escola Sem Partido. 

“Os estudos evidenciam que tanto o pânico moral em torno da categoria acusatória ‘ideologia de gênero’ quanto as políticas públicas ultraconservadoras e neoliberais criadas nos últimos anos são responsáveis pelo silenciamento desses temas nas escolas”, explica o professor Marco Prado, que também é doutor em Psicologia Social. “O pânico criado em torno da infância e da adolescência com relação à sexualidade e ao gênero colaborou para impedir que esses temas fossem abordados com seriedade, maturidade e contextualização, cumprindo as diretrizes constitucionais.”

Segundo Denise Carreira, o discurso da “ideologia de gênero” estimula o medo e o silenciamento sobre as agendas de gênero e sexualidade e gera interdições nas políticas educacionais em vários países da América Latina, não se restringindo ao Brasil. 

“Temos repetido em vários espaços – como recentemente na Conferência Nacional de Educação, ocorrida no final de janeiro deste ano – que os governos não podem se deixar sequestrar pela ação desses grupos, que ao manipularem a desinformação e o preconceito junto à população não somente atacam os direitos das mulheres e da população LBTQIA+, mas a própria democracia”, diz a professora da USP. 

Marco Prado acrescenta que, no contexto brasileiro, é inegável a centralidade que as questões de gênero ocuparam na organização conservadora do governo Bolsonaro, que fomentou a criação de políticas públicas “para conter, silenciar e anunciar uma produção de nomes, significados e diretrizes que apenas fortalecem a ideia de que sexualidade é um assunto privado e de ordem familista”. 

Ele cita como exemplos as políticas que saíram do ex-Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos em articulação com o MEC, chamadas de “Família na Escola e/ou Escolas e Família”. 

Na opinião do professor, essas políticas foram “inflamadas para incendiar qualquer discussão sobre diversidade de gênero e sexualidade e ainda exercer um certo controle moral sobre professores e educadores”, de modo que o pânico moral se instalou nas políticas educacionais brasileiras, que agora carecem de reconstrução.

“O principal desafio consiste em resgatar as escolas como espaço seguro, plural e democrático, de vivências positivas e aprendizado para todas as pessoas”, defende Janaina Oliveira. “Uma estratégia para educação não pode ser isolada. Esse é o primeiro alicerce, no contexto das políticas públicas, para a construção de uma sociedade de paz, com justiça social e proteção às populações historicamente vulnerabilizadas.”

Escassez de diálogo 

Em entrevista à Diadorim, o coordenador-geral de Políticas Educacionais em Direitos Humanos do MEC, Erasto Fortes Mendonça, explica que a política nacional de educação voltada à população LGBTQIA+ é regida por instrumentos normativos de “caráter mais amplo”, que preveem “o combate a todo tipo de preconceito e discriminação no âmbito das instituições educacionais”. 

Questionado sobre ações do MEC que alicercem essas políticas, o coordenador alegou, no entanto, que “a política nacional de combate à LGTfobia é executada pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania”, citando toda a estrutura orgânica da pasta, inclusive o Conselho Nacional LGBTQIA+, que relata dificuldades de dialogar com o MEC.

Mendonça diz que o Ministério da Educação participou de “inúmeros” eventos de educação em direitos humanos no ano passado, onde os direitos da população LGBTQIA+, entre outros, foram discutidos, e também realizou “reuniões periódicas” com a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+.

Via Lei de Acesso à Informação, porém, a Diadorim não encontrou qualquer registro de reunião oficial entre a pasta e a secretaria dirigida por Symmy Larrat em 2023.

Em nota à reportagem, Larrat menciona uma colaboração entre o órgão e a Secadi. “Apontamos nossas considerações sobre o Pacto Nacional pela Alfabetização e Qualificação da Educação de Jovens e Adultos (EJA), com a necessária inclusão da população LGBTQIA+, em especial das pessoas trans, travestis, não binárias e intersexo negras e indígenas de periferias, do campo, das águas, de florestas e de aldeias, como parte de seu público-alvo”, fala a secretária. 

Segundo ela, foi sugerida “à Secadi a necessidade de oferta de formação adequada para as equipes pedagógicas que recebem turmas de EJA em relação aos direitos das pessoas LGBTQIA+, para serem efetivamente criados ambientes acolhedores e respeitosos”. As sugestões ainda não foram concretizadas.

Marco Prado avalia a resposta do MEC como “tecnocrata e sem sentido algum”, já que os planos e diretrizes são insuficientes para exercer, implementar e avançar em políticas públicas democráticas de enfrentamento às violências de gênero e sexualidade, bem como fortalecer a presença das diversidades nas escolas públicas. O professor reconhece a importância histórica dos documentos citados por Mendonça, mas ressalta que ao existirem sem políticas públicas que os apoiem e efetivem, eles servem apenas para legitimar o silenciamento do governo sobre ações práticas. 

“Isso é totalmente cínico como argumento político porque a realidade é que morrem a cada dia pessoas LGBTQIA+ por ausência das principais instituições públicas do país, uma delas é a educação”, argumenta o professor. 

“Uma escola pública num território muda completamente a política local. E uma escola pública que combate o preconceito e a violência contra a população LGBTQIA+ em um território incide sobre famílias, comunidades e instituições. Portanto, a nossa questão é bem mais complexa do que documentos, embora eles tenham importância quando contextualizados no âmbito das ações públicas”, diz.

Para o fortalecimento desses marcos normativos, Denise Carreira reivindica que “o Conselho Nacional de Educação construa Diretrizes Nacionais Curriculares para a Igualdade de Gênero, Raça e Diversidade Sexual na Educação e uma normativa que estabeleça mecanismos de defesa da laicidade e limites negativos à presença das religiões em escolas públicas”. Ambas as normativas foram propostas nas Conferências Nacionais de Educação de 2014 e deste ano, e foram aprovadas.

Horizontes

O primeiro passo para a retomada da educação para a diversidade nas escolas, na visão da conselheira Janaína Oliveira, é o MEC de Camilo Santana se posicionar, de forma nítida, sobre a promoção e defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+.

A partir desse posicionamento, ela também recomenda a elaboração de uma política pública nacional de gênero e sexualidades na educação, composta por quatro eixos: 

  • Eixo 1: A formação de profissionais da educação das redes públicas e privadas;
  • Eixo 2: A elaboração de materiais de apoio pedagógico;
  • Eixo 3: A elaboração de campanhas contra as violências e violações de direitos das pessoas LGBTQIA+ nas escolas;
  • Eixo 4: A criação de diálogo permanente com os movimentos sociais, por meio do Conselho, para a implementação dessa política pública.

O professor Marco Prado também sugere a produção de material específico, que dê visibilidade para a população LGBTQIA+ nas escolas, a ser trabalhado com educadores, pais, mães e cuidadores. Ele ainda demanda “políticas de formação continuada de educadores para agir em torno das questões da diversidade sexual e de gênero e combater a violência e preconceito no cotidiano escolar”.

Outra proposição do especialista é a criação de políticas de abertura para os temas da diversidade, “com incentivo para que as vozes múltiplas possam voltar para dentro das escolas sem mecanismos acusatórios, o que recoloca a escola como uma política de estado e não como uma política de família”. 

“A ofensiva ultraconservadora sequestrou a ideia da escola pública como política de estado, transformando-a em uma política da família. Isso é uma ação completamente inconstitucional. A escola também terá que lidar com cuidadores, pais e mães, mas ela é, antes de tudo, uma política de estado da diversidade da constituição da sociedade brasileira. É preciso ações políticas e diretrizes que recoloquem a escola pública no devido lugar a que ela se destina: a formação da cidadania”, argumenta.

Por fim, ele recomenda o diálogo com grupos LGBTQIA+, a fim de desmontar as políticas antigênero que foram instaladas no país e elaborar novos caminhos.

 

De forma mais imediata, Denise Carreira defende a constituição de um grupo interministerial, a ser liderado pelo MEC e integrado por outros ministérios e secretarias especiais, com ampla participação da sociedade civil, que construa as bases para uma política nacional de promoção de direitos e de enfrentamento da violência contra meninas, mulheres e população LGBTQIA+ na educação. 

“Precisamos de uma política de governo na educação, multidimensional e interseccional, planejada e coordenada, que ultrapasse ações pontuais e tímidas”, coloca a professora da USP. Para ela, as políticas da diversidade trazem um tensionamento fundamental para a elaboração de políticas educacionais universais: elas questionam quem são os sujeitos referenciais dessas políticas, explicitando o racismo, o sexismo, a LGBTfobia, o capacitismo e tantas outras discriminações.

“Entendo que as provocações das chamadas ‘agendas da diversidade’ precisam deixar de serem consideradas somente ‘especificidades’ para irradiarem na reformulação e na implementação do conjunto das políticas educacionais universais, que continuam sendo produtoras de desigualdades e violências cotidianas e estruturais”, afirma.

Agenda 2024

Segundo Erasto Fortes Mendonça, o MEC está dialogando com a OEI (Organização dos Estados Iberoamericanos) para elaborar um termo de referência e contratar uma consultoria especializada que terá a missão de elaborar “cadernos temáticos sobre educação em direitos humanos, voltados a profissionais da educação que atuam na Educação Básica”, sendo que um deles será sobre os direitos da população LGBTQIA+. 

A instalação de um “Grupo de Trabalho Técnico sobre o Enfretamento à Misoginia, ao Preconceito e a Discriminação na Educação” também está em “fase de entendimentos internos” na pasta. 

Ainda segundo Mendonça, uma ação concreta da pasta para esta temática, articulada em 2023, está prestes a sair do papel. Trata-se de um curso de aperfeiçoamento em educação, direitos humanos e diversidade, fruto da colaboração técnica firmada entre a pasta e a Universidade Federal de Uberlândia. As aulas devem ser realizadas este ano, mas sem data definida, e 5,4 mil profissionais que atuam na Educação Básica, nas 27 Unidades da Federação, serão convidados a participar. 

Tendo em vista a falta de dados sobre a população LGBTQIA+ na educação, Symmy Larrat diz que a Secretaria Nacional LGBTQIA+  firmou um acordo de cooperação técnica com o Instituto Matizes para construir um Índice de Monitoramento dos Direitos LGBTQIA+.

A secretária também cita a publicação da Estratégia Nacional de Enfrentamento à Violência contra Pessoas LGBTQIA+, em dezembro do ano passado, e a Estratégia Nacional de Trabalho Digno, Educação e Geração de Renda para Pessoas LGBTQIA+ em Situação de Vulnerabilidade Social, instituída em fevereiro deste ano.

O objetivo, frisa Larrat, é o “desenvolvimento do planejamento e a elaboração de políticas públicas com entidades parceiras para elevação da escolaridade, oferta de formação cidadã, geração de vagas de emprego digno e acompanhamento da integração das pessoas no mercado de trabalho formal”.

O Ministério dos Direitos Humanos, em parceria com a Enap (Escola Nacional de Administração Pública), elaborou um curso on-line e gratuito voltado para pessoas que atuam na garantia, defesa e promoção dos direitos de pessoas LGBTQIA+, sejam elas servidoras públicas, profissionais da iniciativa privada e/ou integrantes dos movimentos sociais.

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