Milícias impedem a população de se isolar contra a Covid-19, diz pesquisador
Rafael Ciscati
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A atuação de grupos de milicianos na Baixa Fluminense cria limites às medidas de distanciamento social — importantes para conter o avanço do novo coronavírus. É o que afirma o historiador Fransérgio Goulart, coordenador da Iniciativa Direitos à Memória e Justiça Racial (Idmjr). Ao longo do último mês, a Idmjr reuniu relatos de moradores dos 13 municípios da região. As histórias contam como, ameaçados pelas milícias, comerciantes locais são obrigados a reabrir seus negócios, sob pena de sofrer represálias: “A ordem é manter tudo funcionando normalmente”, diz Goulart. O cenário é mais claro, diz ele, nas periferias das cidades, onde os índices de isolamento social são menores, e a presença das milícias mais notável.
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A conclusão consta em um levantamento recém-divulgado pelo grupo coordenado por Goulart. Além da atuação das milícias, o trabalho examinou a atuação das operações policiais na região. Desde meados de março, quando o governo Witzel editou um decreto determinando medidas de distanciamento social, ocorreram 58 operações policiais na Baixada Fluminense. Segundo Goulart, essa conjunção de fatores tem efeito deletério para a saúde da população: “A Baixada é um dos epicentros da Covid-19 no Rio de Janeiro. Esse quadro dificulta o isolamento, e contribui para aumentar o número de doentes”
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Brasil de Direitos: O relatório afirma que a Baixada Fluminense vive um processo de expansão da atuação das milícias. Como assim?
Fransérgio Goulart: Os grupos de extermínio formados por policiais surgem na Baixada ainda durante a ditadura militar. Eles são os embriões das milícias, como as conhecemos hoje. Desde aquela época, a atuação desses grupos se expandiu — ao ponto de, em um dado momento, contar mesmo com a anuência de parte da população. Vendia-se a ideia de que as milícias tornariam a região mais segura. Os grupos de milicianos passaram a dominar atividades econômicas — venda de gás, mototáxi, pequenos comércios. E a cobrar o pagamento de taxas à população. Na última década, as milícias estenderam sua influência sobre a política. Nas câmaras municipais da Baixada Fluminense, há candidatos apoiados por esses grupos, que tentam garantir vantagens a eles. Por isso afirmamos que, desde a ditadura militar, a Baixada Fluminense e a zona oeste da cidade do Rio de Janeiro são laboratórios de uma política de segurança pública baseada na atuação das milícias.
Há reflexos da ação das milícias nas políticas de segurança pública?
Os dados que coletamos mostram que existe um padrão na atuação desses grupos e na atuação das forças policiais. Há, na Baixada, territórios dominados pelo Comando Vermelho, uma facção criminosa. Dados coletados no Twitter das polícias civil e militar mostram que a imensa maioria das operações policiais, na Baixada, ocorrem nessas áreas dominadas pelo CV. O foco é o combate ao tráfico. Uma vez que o domínio da facção sobre o território enfraquece, depois de sucessivas operações policiais, a área é ocupada pelas milícias — e sai do radar das forças de segurança pública. Não podemos dizer que o objetivo da polícia é, deliberadamente, favorecer a entrada das milícias nesses territórios. Mas é esse o resultado.
O boletim identificou 58 operações policiais ocorridas desde meados de março, quando as cidades da região adotaram medidas de distanciamento social, como o fechamento de serviços não essenciais. Essas operações seguem esse padrão?
Na Baixada Fluminense, todas as operações aconteceram em áreas dominadas pelo Comando Vermelho. Não houve ação em áreas de milícia. Esse padrão se repete na cidade do Rio de Janeiro, embora não tenha sido esse o foco do levantamento. No caso da Baixada, o diagnóstico foi muito preciso. Isso incita alguns questionamentos: por que não há operações em áreas de milícia? Ou em áreas dominadas por outras facções criminosas?
Isso deixou as milícias livres para agir durante a pandemia? Como tem sido a atuação desses grupos nesse período?
As milícias formam um grupo diversificado. Se, há alguns anos, havia alguma homogeneidade na sua atuação, hoje já podemos falar em diferentes frações de milícia. Em grupos que, inclusive, competem entre si pelo domínio de territórios. Mas, de maneira geral, o comportamento foi o mesmo: no início da pandemia, esses grupos respeitaram as ações de distanciamento social. Desde o começo de abril, no entanto, recebemos relatos de comerciantes que contam ter sido obrigados a reabrir seus negócios, sob ameaça dos milicianos. A explicação é econômica. As milícias cobram taxas de proteção — e as cobranças continuam a ser feitas, mesmo durante a pandemia. Os grupos de milicianos também gerenciam algumas atividades econômicas: bailes funk, chácaras, venda de gás, mototáxi. A ordem é manter tudo funcionando. Quem não obedece é expulso da comunidade, perde o comércio. Eles são os donos do território.
Organizações sociais atuantes na Baixada cobram que a polícia interrompa as operações durante a pandemia — e invista em ações de inteligência. Os números do boletim sugerem queda no número das operações?
Se considerarmos apenas a Baixada Fluminense, houve um aumento no número de operações policiais. Solicitamos ao Ministério Público uma explicação para isso — argumentando, inclusive, que essas ações, durante uma pandemia, colocam em risco a saúde dos próprios policiais. Por que não privilegiar a inteligência em lugar do enfrentamento?
Quais os efeitos disso para a saúde da população?
A Baixada Fluminense, hoje, é um dos epicentros da Covid-19 no estado do Rio de Janeiro. Há mais de um motivo para isso. Além do sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS), subfinanciado, essa escalada dos casos é estimulada pela atuação dos milicianos. Eles impedem que o comércio feche, que as pessoas se isolem. As milícias se aliam a grupos neo-pentecostais, para manter igrejas funcionando. Um dos casos mais emblemáticos disso é Duque de Caxias. A cidade é a que concentra o maior número de casos de Covid-19 na região. Em março, o prefeito disse que agiria para manter as igrejas abertas. Segundo ele, a cura viria pela fé. Por fim, ele próprio acabou doente. Todos esses fatores contribuem para aumentar o número de pessoas doentes, e o número de mortos.
Foto de topo: o historiador Fransergio Goulart (Júlio César Almeida / Fundo Brasil)
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