Na política de drogas, Brasil se comporta como país colonizado
Rafael Ciscati
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Desde que a atual lei de drogas foi promulgada, em 2006, o número de pessoas encarceradas no Brasil deu um salto. Hoje, o país ocupa o terceiro lugar no ranking das maiores populações carcerárias do planeta: são mais de 700 mil pessoas, contra as 401 mil de 13 anos atrás. Nesse mesmo período, cresceu a parcela de presos sob a acusação de tráfico de drogas. Em 2005, eles representavam 14% da população carcerária. Hoje, equivalem a 30%.
Os números contabilizam uma realidade que Railda Alves acompanha cotidianamente há mais de 20 anos. Em 1998, quando seu filho foi enviado para a Fundação Casa, Railda deu início a um grupo de mães que se encarregou de denunciar as violências sofridas pelos jovens encarcerados: “Presenciamos uma série de violações de direitos”, conta. “Vimos meninos com os dentes quebrados, com hematomas visíveis. Meninos com o fígado dilacerado de tanto apanhar”.
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Com o tempo, o grupo se transformou na Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar). A organização ocupa uma sala ampla e parcamente mobiliada no primeiro andar de um prédio no extremo leste da cidade de São Paulo. Por ali, passam diariamente famílias em busca de orientação para tratar dos casos de parentes presos. As acusações de tráfico se repetem: “Nessa semana, nos chegou o caso de um rapaz preso na Cracolândia”, diz, se referindo ao quadrilátero no centro de São Paulo conhecido por reunir usuários de drogas. “Ele estava sujo, com as unhas pretas. O juiz sabia que aquele rapaz era um usuário, e não um traficante”.
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A lei de 2006 substituiu uma legislação da década de 1970, e instituiu uma novidade: a distinção entre traficante e usuário. Ambas as condutas são consideradas crime. O traficante pode ser punido com prisão. O usuário fica sujeito a penalidades e sanções administrativas. Mas não deve ser enviado para a cadeia. Com a medida, esperava-se que a taxa de encarceramento caísse. Ocorreu o contrário: na ausência de critérios objetivos para distinguir traficantes de usuários, cabe ao juiz definir quem é quem. A vagueza da lei contribuiu, segundo seus críticos, para que muitos usuários — que portavam quantidades ínfimas de drogas — fossem punidos como traficantes. O número de presos cresceu.
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Fenômeno semelhante se repetiu em outros países que flexibilizaram a legislação referente ao porte de drogas, suspendendo algumas punições sobre a prática. Em 2016, a socióloga Nathália Oliveira publicou um trabalho que avaliava os efeitos dessas políticas em 36 países. Em 22 deles, os números do encarceramento cresceram, conforme mais pessoas passaram a ser processadas como traficantes. Para ela, o aparente deslize da legislação não é acidental: “Sempre que me perguntam se a lei de drogas acerta ou erra, digo que é importante entender que essa não é uma lei despida de intencionalidade”, afirma. “Ela erra se o objetivo é garantir direitos. Mas acerta para a finalidade para a qual foi criada, de controle e extermínio da população negra”.
Nathália é uma das coordenadoras da Iniciativa Negra para uma Nova Política sobre drogas. Criada em 2015, a ONG advoga que repensar essa legislação é fundamental para combater o racismo no Brasil. Hoje,64% das pessoas presas no país é negra. “A política sobre drogas é entendida como uma guerra às substâncias. Mas, no Brasil, ela é direcionada contra população negra que, historicamente, tem seus direitos segregados.”
Railda e Nathália se encontraram, a convite da Brasil de Direitos, no começo de novembro, para discutir os descaminhos da Lei de Drogas. A conversa aconteceu no mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria retomar o julgamento sobre a descriminalização do porte dessas substâncias para consumo próprio. O debate se arrasta na corte desde 2015. Por decisão do presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, saiu da pauta daquela tarde.
Até agora, três ministros já votaram. Todos a favor de suspender as punições sobre o porte de maconha. Destes, apenas Gilmar Mendes defendeu que a decisão valesse para todas as drogas. Para Nathália, esse tipo de reforma, feita gradualmente e por etapas — substância por substância — é já uma tradição brasileira: “A gente viu esse discurso, da reforma lenta e gradual,quando da abolição da mão-de-obra escrava” lembra. “O Brasil acha que nunca está preparado para qualquer reforma estrutural. É um pensamento de país colonizado”, afirma.
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