Fogo avança sobre terras indígenas e comunidades se mobilizam para combater incêndios
Rafael Ciscati
8 min
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Focos de calor nas terras indígenas da Amazônia alcançaram o maior número dos últimos 20 anos. Segundo o Ibama, Indígenas e quilombolas são maioria entre os brigadistas que atuam em todo o Brasil
As aldeias da Terra Indígena (TI) Mãe Maria, no Pará, estavam prestes a começar os preparativos para a festa da Passagem da Menina, em setembro deste ano, quando foram surpreendidas pelo fogo. As chamas se espalharam depressa, lembra Concita Sompre, da aldeia kyikatêjê. “Por grupos de whatsapp, mobilizamos a comunidade, para combater os focos de incêndio”, conta ela. “Mas eles eram muitos. Logo, não demos conta”.
Os incêndios avançaram sobre a floresta, atingiram algumas aldeias e queimaram uma escola. Concita é uma das fundadoras da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), e participava de uma reunião em Roraima, quando a situação saiu de controle. De lá mesmo, pelo celular, organizou a reação: cobrou ajuda emergencial do governo do estado, do Ibama e de empresas privadas.
Desde o dia 14, a aldeia kyikatêjê, onde Concita vive, se tornou a base de uma operação de guerra. De lá, partem as equipes que entram na mata para debelar as queimadas. Das muitas pessoas, entre funcionários do governo e voluntários, que acorreram para apoiar no combate ao fogo, pelo menos 46 são indígenas, conta Concita. São 20 brigadistas do povo Tembé, treinados no enfrentamento a emergências desse tipo; e 20 indígenas dos povos Guarani e Gavião, nascidos e criados na própria TI. Concita explica que esses últimos não receberam formação para atuar em meio a incêndios. No meio da mata, que conhecem desde sempre, eles atuam guiando as equipes, para que as brigadas não se percam na floresta.
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A situação vivida na TI Mãe Maria se repete, em alguma medida, nas demais terras indígenas da Amazônia. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais apontam que, desde o começo de junho, as TIs do bioma registraram mais de 9 mil focos de calor. Uma análise do site InfoAmazônia constatou que essa é a pior temporada de queimadas na região desde 2003.
Pelo país, o fogo também consome vastas áreas fora das terras indígenas. Especialmente no Cerrado e no Pantal. Seu avanço forçou o Estado a adotar medidas emergenciais: na última semana, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a abertura de crédito extraordinário, fora do teto de gastos, que o governo federal poderá utilizar para combater os incêndios. A verba deve ser usada na compra de equipamento e na contratação de brigadistas.
Em entrevista ao jornal O Globo, o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, contou que há 3245 brigadistas atuando em todo o país. Eles fazem parte do Programa de Brigadas Federais, mantido pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo). Pelo menos metade deles é indígena. Outros 20% são quilombolas.
Além de atuar nas brigadas federais, indígenas ainda participam de brigadas voluntárias, organizadas nas próprias aldeias. Por vezes, elas são a única defesa das comunidades contra as chamas.
É assim na Terra Indígena Sete de Setembro. Localizada em Rondônia, quase na fronteira com o Mato Grosso, a TI reúne 28 aldeias do povo Paiter Suruí. Ao longo deste sábado (21), os moradores da maior delas, Gapgir, acompanharam apreensivos o avanço das queimadas. Diante da escola da comunidade, Luiz Weymilawa Suruí gravou um vídeo que enviou à reportagem. Próximo de onde estava, uma coluna de fumaça se erguia sobre a mata. “Segundo as informações que temos, esse fogo vem desde Rondolândia. Queima há dias, não sei exatamento quando começou”, contou. “A maior parte do território da Sete de Setembro está queimando”.
Ao longo da semana, os brigadistas da comunidade usaram drones para monitorar o avanço do fogo. A intenção, contam os Paiter, é analisar os riscos e criar uma estratégia para proteger a aldeia. “Estamos em estado de emergência”, disse Alexandra Borba Suruí à Brasil de Direitos, por whatsapp. Ela conta que, sobrecarregado, o poder público da região não consegue dar respostas rápidas à emergência. “Está tudo queimando”.
Mesmo quando há presença do poder público, a atuação dos indígenas no combate às chamas é importante porque torna o trabalho mais preciso, diz Concita, da Ti Mãe Maria. “Há muitos caminhos dentro da mata. Quem não conhece o território corre o risco de se perder”, diz ela. No último dia 15, quando a base da aldeia kyikatêjê mal se formara, Concita disparou um vídeo que circulou pelas redes sociais. Conclamava mais indígenas da comunidade a participar do trabalho.
Localizada a 40km de Marabá, a TI Mãe Maria ocupa um território de 62 mil hectares, onde vivem quatro etnias. Concita lembra que, já a algum tempo, a região sofre com incêndios quase anuais. Especialmente durante o verão amazônico, entre junho e o final de setembro, quando chove pouco e faz calor na região. Tradicionalmente, diz ela, as chamas se concentram nas imediações da estrada que corta o território. E, mais recentemente, sob os dois linhões de transmissão de eletricidade que passam pela terra indígena: o linhão da estatal Eletronorte, e o linhão da Equatorial. “Esses são pontos onde a floresta foi desmatada para execução das obras”, lembra Concita. Ali, a mata rasteira ficou mais vulnerável. Ao cortar a TI, as obras também abriram caminho para invasores: Concita suspeita que boa parte dos incêndios tenha origem criminosa.
Em 2024, no entanto, o estrago foi maior que a média. Concita conta que o fogo penetrou mais fundo na floresta, 1km ou 2km mata adentro. Os focos se multiplicaram. Na quinta-feira de manhã, quando conversou com Brasil de Direitos, ela acabara de retornar de um sobrevoo. Àquela altura, depois de cinco dias de trabalho intenso, os brigadistas já tinham conseguido sufocar parte das chamas. “Mas, aos olhos da gente, que é leigo, ainda parece que tem muita mata queimando”, diz Concita, deixando transparecer certa angústia na voz.
Ela culpa o tempo anormalmente seco pelo estrago acima da média. A estiagem prolongada é também apontada como um fator importante para a propagação dos incêndios no restante do país. Hoje, o Brasil vive a seca mais intensa dos últimos 70 anos. Mais de 3 mil municípios — dos 5 mil existentes no país — sofrem com a falta de chuvas. Mais de um fator pode ter colaborado para esse quadro. Ainda assim, tal qual a seca de 2023 (que atingiu o Norte do Brasil), há suspeitas de que os eventos de 2024 tenham sido intensificados pela crise climática.
Conforme vê os estragos se avolumarem, Concita diz temer que o território que conheceu um dia desapareça. “A mata perdeu seu cinturão de proteção. Hoje, estamos cercados por cidades e cortados por obras de infraestrutura”, diz ela. “Que floresta vamos deixar para os nossos descendentes? A mata é parte da nossa cultura. Quando ela queima, isso se perde”.
No polo de operações da aldeia kyikatêjê, Concita organiza o suporte às equipes que entram na mata: recebe doações, coordena a preparação dos alimentos e faz a interlocução com o poder público. Todas essas atividades são também encabeçadas pelos indígenas. Ela conta que, desde o dia 14 — quando foi montada essa operação de guerra — sua jornada começa às 5h30 da manhã, e se estende até depois das 23h. É exaustivo, mas ela espera que esse esforço mantenha de pé a floresta onde seu povo vive. “Temos esperanças de vencer as queimadas até o final da semana que vem”, conta. “Para retomar os festejos que foram interrompidos”.
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