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Num dos estados que mais mata mulheres, uma ativista sob ameaça

Rafael Ciscati

11 min

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Foto: A Associação de Mulheres Negras do Acre durante protesto contra o feminicídio em 2021 (Reprodução)

As câmera que cercam a casa de Mayra Chaves— uma residência pequena, de paredes maltratadas pelo tempo, na zona rural de uma cidade do Acre — jamais desligam. Desde que se mudou para lá com a família, há pouco mais de um mês, a pedagoga repete um mesmo roteiro todas as manhãs: celular em punho, acessa as imagens feitas pelo sistema de segurança durante a madrugada. Assiste a tudo o que foi gravado das 3h até o amanhecer. “Fico atenta a intrusos, a movimentações estranhas”, diz ela. “Hoje, durmo mal. Deixo sempre janelas e portas trancadas com cadeado”. 

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Aos 36 anos, Mayra é uma mulher desenvolta. Negra (“orgulhosamente negra”, como diz) se notabilizou entre amigos e vizinhos pela cabeleira vasta e cacheada: “Minha marca registrada”, brinca. Desde o começo do ano passado, Mayra é também uma das três coordenadoras do núcleo formado pela Associação de Mulheres Negras do Acre no município de Senador Guiomard. Uma cidade pequena, com pouco mais de 23 mil habitantes, distante menos de 30km da capital Rio Branco.

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O trabalho é voluntário e envolve a organização de oficinas de formação sobre racismo e feminismo, a realização de atividades culturais e manifestações de rua. Ações que transformaram Mayra em referência entre as mulheres da região. Muitas a procuram em busca de orientação, sobretudo aquelas que são agredidas pelos maridos. Algumas só querem alguém com quem conversar. “A violência doméstica ainda é muito naturalizada. A mulher apanha do marido e se sente culpada, acha que fez algo de errado”, afirma. Outras querem ajuda para denunciar seus agressores. “Nos últimos cinco anos, acompanhei as denúncias de quase 80 mulheres”, diz Mayra, arriscando um cálculo aproximado. Hoje, ela e a família se escondem. Depois de anos ajudando mulheres a denunciar seus agressores, Mayra se tornou alvo da violência de gênero em um dos estados que mais mata mulheres no Brasil.

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Já passava das 21h, no dia 30 de novembro de 2021, quando dois homens apareceram no quintal da antiga casa de Mayra. O imóvel era afastado da área urbana do município e, exceto pelos  filhos pequenos, ela estava sozinha. Aquele fora um mês de trabalho intenso: depois de organizar manifestações pelo dia da Consciência Negra, Mayra e as colegas tinham voltado às ruas numa passeata contra o feminicídio. “Mayra foi para a praça, com um megafone em punho, denunciar o racismo e a violência contra a mulher”, diz Almerinda Cunha, diretora da Associação. “Esse trabalho fez dela um alvo”.

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Encapuzados, os dois intrusos seguraram Mayra pelos braços. “Disseram que, se eu não fizesse silêncio, eles matariam meus filhos”. Posta no porta-malas de um carro, ela foi levada para um cativeiro nas cercanias da penitenciária da cidade. Durante cerca de uma hora, foi torturada, numa sucessão de socos e pontapés. Com uma faca, teve os cabelos cortados. “O tempo todo, eles diziam que iam me matar. Falei que tinha me reconciliado com Deus e estava pronta”.

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Mayra não morreu.  Foi deixada seminua numa estrada deserta, por onde correu em busca de socorro. Rindo, seus agressores davam tiros para o alto enquanto ela se afastava. “Disseram que aquilo era um recado. E que eu deveria me comportar, porque já tinha prejudicado muita gente”.

O sequestro é investigado pela polícia civil do Acre. Como os homens usavam máscaras, Mayra diz que não conseguiu identificá-los. Apesar de não conhecer a identidade dos agressores, Mayra e as colegas suspeitam de sua motivação. “Ao falar, em praça pública, contra o racismo e o feminicídio, Mayra atraiu o ódio das pessoas”, diz Almerinda. “Tentaram silenciá-la”.

Mortas por ser mulher

Até 2015, não existia no Código Penal brasileiro um termo para definir o assassinato de mulheres causado por razões de gênero. A legislação foi alterada por pressão de movimentos sociais: “O feminicídio surge como um qualificador do crime de homicídio a partir da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que aconteceu entre 2012 e 2013 para apurar crimes e violências contra a mulher”, disse a socióloga Jolúzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) à Brasil de Direitos em 2021.

A mudança legal ressaltou a especificidade do crime. “Ele acontece por razões de gênero, e o principal contexto dele é o da violência doméstica, das relações afetivo-conjugais”, explica Jolúzia. Por isso mesmo, costuma ser previsível — e prevenível. Costumeiramente, o feminicídio é o ponto culminante de uma sequência de agressões. Violências, físicas ou não, que tentam minar a autoestima e a autonomia da mulher. Embora esteja muito associado ao ambiente doméstico, ele pode ocorrer em situações em que não existam vínculos afetivos. Nesses casos, o fundamental é seu caráter misógino. “A violência contra a mulher no Brasil, um país de herança colonial e racista, se expressa como uma forma de castigo”, afirma Jolúzia.

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Desde que o Brasil passou a registrá-los, o número de feminicídios cresce ano a ano. Nessa escalada, o Acre aparece em destaque. Em 2020, a cada 100 mil mulheres acreanas, 2,7 foram mortas por razões de gênero. A taxa é mais que  o dobro da média nacional, de 1,2 — e a quarta maior do país para aquele ano.

Nos dois anos anteriores, em 2018 e 2019, o estado ocupara o topo do ranking de feminicídios no país. As informações são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que organiza um informativo anual a partir de dados coletados junto às secretarias estaduais de Segurança Pública. A mudança de posição não foi sinal de que o cenário melhorou: “Na verdade, o número de feminicídios aumentou” afirma  Otília Marinho de Amorim, coordenadora de administração do Centro de Atendimento à  Vitima (CAV)  do Ministério Público do Acre (MPA). “Acontece que, nacionalmente, a frequência desse crime também subiu. É como uma epidemia”.


Acre aparece entre os estados brasileiros com maior taxa de feminicídio em 2020 (fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública)

Os dados do MPA mostram que, em 2020, houve ao menos 13 feminicídios no Acre. Na maioria dos casos — em 34% das situações — as vítimas eram mulheres negras. Em 20% dos crimes, vítima e assassino não compartilhavam vínculos afetivos. ““Ela foram mortas pelo menosprezo a sua condição de mulher”, disse Otília “A “>Na ocasião, o deputado estadual Daniel Zen (PT-AC) lembrou que a Assembleia Legislativa do Acre recém aprovou a criação de uma ouvidoria da mulher, que ainda não saiu do papel. O órgão deve se concentrar em dar apoio à apuração de denúncias de violências contra as mulheres. “Para além disso, é importante ampliar a rede de assistência social. De modo a auxiliar mulheres em vulnerabilidade”, disse. 

Na avaliação de Almerinda, para mudar o cenário não bastam ações de punição. É preciso alterar mentalidades. “O machismo, a violência e o feminicídio têm uma causa — o patriarcado. Uma cultura que acredita que a mulher é objeto. A situação é pior para mulheres negras”, afirma. Nas próximas semanas, a Associação prevê a realização de outras atividades centradas nesse objetivo: uma audiência pública com vereadores de Senador Guiomard, um encontro com líderes religiosos da região e uma oficina entre mulheres, para discutir estratégias de proteção. “Não se muda uma cultura com prisão e punição”, diz Almerinda. “Culturas mudam a partir da reflexão coletiva”.

Crescem as ameaças contra defensoras de direitos humanos 

A violência contra Mayra deixou apreensivas suas companheiras de  militância. Criada em 2015, a Associação de Mulheres Negras do Acre reúne ativistas dispersas por todo o estado, e organizadas em núcleos municipais. Em 2021, o grupo peregrinou pelas cidades do interior, promovendo oficinas sobre direitos das mulheres e combate ao racismo. Durante esses quase sete anos de atuação, as ativistas contam que nunca haviam vivenciado ameaças. “Ficamos assustadas, claro. Queremos que o poder público atue para garantir a segurança de Mayra e das demais mulheres no Acre”, diz Roselene de Lima, uma das diretoras da Associação.

O crime contra Mayra reúne, num só incidente, dois problemas graves — além da misoginia, ele se insere num quadro de ameaças crescentes à atuação de defensores e defensoras de direitos humanos. O cenário é, novamente, pior para as mulheres. “No clima político atual, em que há uma reação contrária à defesa de direitos humanos, as mulheres que defendem e promovem direitos são, frequentemente, as primeiras a ser atacadas”, disse Michel Frost, relator especial das Nações Unidas sobre defensores de direitos humanos, em 2019. Na ocasião, ele apresentava seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra. O documento destaca que, globalmente, a ascensão de líderes políticos que encampam discursos misóginos, sexistas e homofóbicos abriu espaço para normalizar a violência contra mulheres ativistas.

Outro levantamento, feito pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos ( ACNUDH) mostrou que, em 2019 e 2020, foram registradas 59 agressões contra mulheres defensoras de direitos humanos no Brasil. Em mais de 42% dos casos,  as mulheres agredidas eram negras. Elas atuavam, principalmente, em três temáticas: igualdade de gênero, direito à terra e liberdade de expressão. Defensoras de causas ambientais e que atuam por igualdade racial aparecem empatadas na quarta posição entre as mais ameaçadas.

O relatório também mostra que, na maioria dos casos registrados, o objetivo dos agressores é intimidar as mulheres. No biênio 2019-2020, homicídios foram a terceira forma mais frequente de violência contra defensoras: houve 13 casos de mulheres assassinadas no período no Brasil.

Depois do sequestro, Mayra não conseguiu mais continuar vivendo na própria casa. Às pressas, mudou-se para o imóvel afastado, onde mora hoje com a família. Câmeras de segurança e grades foram adquiridas com auxílio da organização de defesa dos direitos humanos Front Line Defenders e do Fundo Brasil — mesma instituição que mantém Brasil de Direitos.

Nada disso bastou para que Mayra recobrasse a tranquilidade. Hoje, a família vive com medo. “Meu filho mais novo tem um ano. Desde que tudo aconteceu, ele não desgruda de mim. Chora quando eu me afasto”, conta ela.

Além do medo, lhe dói a perda dos cabelos cacheados. Numa tentativa de consolá-la, as amigas da Associação compraram uma longa peruca. Mayra era apegada à cabeleira, uma espécie de símbolo de seu orgulho como mulher negra. “Sou filha de uma mulher negra e de um homem branco e racista”, afirma. Na infância, ela diz que o pai costumava fazer comentários ofensivos sobre o cabelo e a cor da pele da filha. Já adulta, Mayra decidiu que trabalharia para combater o racismo de que fora vítima. Foi enquanto cursava o primeiro ano de faculdade que ela conheceu a Associação de Mulheres Negras, e se juntou ao grupo, em 2016.

Hoje, escondida, Mayra diz sentir falta de ajudar as mulheres a quem oferecia apoio. “Eu ainda recebo mensagem pelo whatsapp. Elas me procuram em busca de orientação”, conta. “Mas eu não consigo ajudá-las. Hoje, quem precisa de ajuda sou eu”.

Para saber mais
Explore os dados sobre violência de gênero compliados pelo instituto Patrícia Galvão
A violência contra meninas e mulheres em 2020, nos números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

 

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