Brasil de Direitos
Tamanho de fonte
A A A A

O 8 de março e as mulheres das águas

Renata Costa

4 min

Imagem ilustrativa

Navegue por tópicos

O dia 8 de março se aproxima e nós, mulheres, nos perguntamos: com quem contar? No Brasil desse 8 de março de 2021, faltam escola, ação, políticas públicas.  Felizmente, sobram iniciativas de mulheres espalhadas pelo país, que constrõem suas próprias redes de solidariedade para lidar com tudo que vivemos e testemunhamos nestes tempos pandêmicos. Me chamo Renata Costa e este é um texto para tecermos conexões entre o projeto que desenvolvo, “Mulheres Quilombolas, Memórias dos Rios”, e o 8 de março, o Dia Internacional da Mulher. Ao pensar nas lutas dos movimentos de mulheres, lembro de Dona Osmara dos Santos Guilherme,  mulher quilombola nascida na comunidade de Porto Grande, próxima à foz do Rio São Mateus, no norte do Espírito Santo (ES). Trago aqui o relato dela.

>>Livro de passatempos apresenta cientistas negras para crianças

Osmara dos Santos Guilherme vive, desde criança, à margens do rio Cricaré. Mestra de jogo de Cosme e Damião, trabalha para manter vivas as tradições locais (foto: arquivo pessoal)

Dona Osmara é mestra de jongo de Cosme e Damião — uma dança tradicional, de raiz africana, com importante fundo religioso. Pescadora, cresceu à beira do Rio Cricaré, um curso d’água que vem sendo seriamente afetado pelas mudanças climáticas e pela ação do homem, como ela própria conta. “O Rio cricaré, no passado, era mais fundo. Tinha mais peixe. Hoje, a gente que é pescador sente o rio seco muito, muito baixo, muita coroa no meio do rio. Antigamente, aqui nesse rio, passava barco grande. Hoje, mesmo com o canal, passa apenas barco pequeno. Eu cansei de, quando criança, tomar banho nos córregos cheios. Muita coisa foi secando até chegar a esse ponto. Eu pescava de linha. Hoje, temos a pescaria, mas não é farta. Cansei de pegar muita traíra , morobá, e os peixes mesmo do córrego”, conta.

>>Ibama e a sentença de morte do médio Xingu

O peixe e o rio estão presentes no lazer, no trabalho e na alimentação. As moquecas de peixe e caranguejo e a caranguejada compõem as festas e a vida das pessoas todos os dias. Dona Osmara é mestra e referência para as jovens jongueiras, a quem ensaia e que se apresentam anualmente na festa promovida na comunidade quilombola de Porto Grande e nas festividades de Itaúnas, às quais comparecem todos os anos.

 Dona Maria, mãe de Dona Osmara, navega o rio Cricaré (arquivo pessoal / Osmara dos Santos Guilherme)

Sobre crescer às margens do rio, mestre Osmara conta: “Me criei na beira do rio e no mangue, vendo meu pai e minha mãe buscar nosso alimento — o siri, a ostra, o caranguejo, o peixe. Esse rio nos sustenta até hoje, é para a água, a luz, o alimento. O nosso emprego é no rio Cricaré. Pego meu sobrinho, minha neta e mostro os buraquinhos do caranguejo onde eu pegava caranguejo, e incentivo meus netos, meus sobrinhos a ter a nossa profissão. Preservar a natureza e ter os nossos alimentos. Os antepassados contam que o rio Cricaré era fundo. Os peixes não ficam no baixo, só no fundo”.

>>Intolerância ou racismo: o que de fato afeta a nossa fé

Dona Osmara, lá pelas tantas de nossa conversa, diz que faz falta um presidente que de fato dê atenção às nascentes, aos córregos e aos rios. Enquanto conversamos, rememoro os sentidos políticos do 8 de março, data que passa tanto pela reivindicação das mulheres soviéticas no começo do século XX, em busca de voto e melhores condições de vida , quanto pela busca por melhores condições de trabalho pelas operárias e feministas americanas na década de 1950.

>>O que é branquitude

Em Porto Grande, como coloca Dona Osmara, a vida, o trabalho, a alimentação, e as memórias são e estão nos rios e córregos que possibilitam que toda uma comunidade viva há mais de cem anos retirando da terra e em comunhão com ela muito do que é necessário para viver uma vida digna. Dona Osmara luta para preservá-los: os rios e seu modo de viver. Que esses fluxos de água — nos quais correm esses barcos dirigidos por mulheres, pescadoras, extrativistas, e suas famílias – possam irromper também em nós, nas pautas políticas de Estado. Que sejamos como o rio, manso quando visto da superficíe, mas que sabe criar correnteza e puxar para si aquilo de que precisa para depuração a transformação.

Foto de topo: o grupo de jongo de Cosme e Damião atravessa o rio Cricaré. (Arquivo pessoal/ Osmara dos Santos Guilherme)

Você vai gostar também:

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

3 abolicionistas negros que você precisa conhecer

Para entender

10 min

Imagem ilustrativa
Mulheres

Rafael Ciscati

Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção

Entrevista

11 min

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA

Notícias

8 min