Brasil de Direitos
Tamanho de fonte
A A A A

Entenda o marco temporal e como ele afeta os direitos dos povos indígenas

Rafael Ciscati

7 min

Imagem ilustrativa

Navegue por tópicos

foto: Manifestação contra o marco temporal na terra indígena Rio Pindaré, Maranhão (crédito: Genilson Guajajara)

Atualização (31/05/2023): começado em 2021, o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) foi interrompido por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. A discussão está na pauta da Corte e deve ser retomada no próximo dia 07 de junho de 2023. Até o momento, foram proferidos dois votos: o do relator, ministro Edson Fachin, que se manifestou contra o marco temporal, e o do ministro Nunes Marques, a favor. 

Nesse meio tempo, avançou na Câmara dos Deputados o projeto de lei 490/07. Entre outras medidas, o texto estabelece um marco temporal para demarcação de terras indígenas: define que os povos originários só têm direito aos territórios que ocupavam (ou pelos quais lutavam) na data em que foi promulgada a Constituição Federal, em outubro de 1988. O PL, votado pela Câmara no dia 30 de maio de 2023, foi aprovado: o placar somou 283 deputados favoráveis ao projeto e 155 contra. Para virar lei, o PL ainda precisa pasar pelo Senado. Leia mais sobre o assunto aqui. 

—–
O Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que pode redefinir o futuro da demarcação de terras indígenas no Brasil.

Na ação, a Corte discute um pedido de reintegração de posse movido pelo estado de Santa Catarina contra o povo Xokleng e contra a Fundação Nacional do índio (Funai). O Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina pede a retomada de uma área que, segundo laudos etnográficos da Funai, foi tradicionalmente ocupada pelos Xokleng e seus ancestrais, e onde hoje vivem, também, indígenas das etnias Guarani e Kaingang.

>>Por que Bolsonaro foi denunciado por genocídio? Entenda a ação em 5 pontos

O resultado da disputa interessa a indígenas de todas as etnias porque, em 2019, o STF decidiu que o julgamento deve ter “repercussão geral”. Isso significa que a decisão tomada servirá de base para  a resolução de disputas semelhantes que surgirem no futuro ou que já estejam em curso.

Nesse caso, o embate acontece entre duas interpretações da Constituição Federal. De uma lado, há aqueles que defendem a tese do marco temporal. Grosso modo, ela afirma que os povos indígenas só têm direito àqueles territórios que eles já ocupavam — ou reivindicavam —  no dia 05 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a atual Constituição Federal do Brasil.

>>Dario Kopenawa: não quero que meu povo morra novamente

Do outro lado, há os defensores da tese do “indigenato”, segundo a qual esses povos podem reivindicar terras tradicionalmente ocupadas por seus ancestrais.

Havia a expectativa de que o julgamento fosse retomado ainda na quarta-feira (25). Cerca de 6 mil indígenas de todo o país estão reunidos em Brasília  para acompanhar a discussão. Segundo cálculos do Instituto Socioambiental, o Acampamento Luta Pela Vida, como a manifestação foi batizada, é a maior mobilização indígenas desde 2005.

Para acompanhar o julgamento, é importante entender 3 pontos principais:

A disputa entre o povo Xokleng e o estado de Santa Catarina

O Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina cobra na justiça a reintegração de posse de uma área da Terra Indígena  (TI) Ibirama-La Klãnõ. A região fica a pouco mais de 200km de distância de Florianópolis, e foi reconhecida pela Funai, em 2001, como uma área de ocupação tradicional dos Xokleng.

Em 2009, a justiça federal de Santa Catarina proferiu uma decisão favorável aos Instituto do Meio Ambiente. Ela seria mantida em 2013 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4). Na ocasião, o tribunal acolheu a tese de que os Xokleng não teriam direito à terra porque não moravam na área na época em que foi promulgada a Constituição de 1988. Em seu artigo 231, a Carta reconhece os direitos dos povos originários aos seus territórios tradicionais. Para questionar a decisão, a Funai levou o caso ao STF.

A luta dos Xokleng pelo seu território tradicional, no entanto, é muito anterior ao julgamento no STF. Desde a chegada dos primeiros colonizados ao sul do Brasil, esse povo foi perseguido e exterminado. No século XIX, os governos das províncias de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul contratavam “brugueiros” — assassinos de indígenas — para matá-los e escravizá-los.

No final de 2020, a Conselho Indigenista Missionário (CIMI) recuperou, em uma matéria, a história de resistência desse povo.

O que diz a tese do Marco Temporal

O marco temporal é uma interpretação da legislação defendida, sobretudo, pelo setor ruralista. Segundo esse entendimento, os povos indígenas só têm direito àquelas terras que ocupavam — ou disputavam judicialmente — em 5 de junho de 1988, quando foi promulgada a Constituição

Ao longo dos anos, tribunais federais aplicaram a tese em mais de uma ocasião, ao decidir pela anulação de demarcações de terras indígenas.

Na avaliação de juristas afeitos à causa indígena, o marco temporal fere a Constituição: “É um absurdo supor que direitos adquiridos deixem de existir, ainda mais a partir de uma data retroativa. O que aconteceria com os indígenas que não estivessem na posse de suas terras tradicionais em 5 de outubro de 1988? Seriam condenados ao degredo? Não poderiam mais exercer seus direitos identitários?”, escreveram  em artigo a advogada Samara Pataxó, assessora jurídica da Articulação dos povos Indígenas do Brasil (Apib), a subprocuradora-geral da República aposentada Deborah Duprat, e a advogada do Instituto Socioambiental  Juliana de Paula Batista.

A tese oposta ao marco temporal é a do “indigenato”.  O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) explica que o indigenato é uma tradição legislativa que entende que os povos indígenas têm direito à terra como um direito originário, anterior à formação do próprio Estado.

Por que isso importa

Se o marco temporal for reconhecido, o direito dos povos indígenas aos seus territórios será restringido. A tese, segundo seus opositores, legitima a violência contra essas populações. Isso importa por que a manutenção e a sobrevivência das culturas indígenas está associada ao direito desses povos à terra.

Para especialistas e organizações que acompanham a discussão, a tese do marco temporal é injusta porque ignora as muitas perseguições vividas pelos povos indígenas ao longo da história do Brasil — perseguições que, em muitos casos, obrigaram essas populações a deixar seus territórios de origem. Ignora, também, o fato de que, até 1988, os indígenas eram tutelados pelo Estado brasileiro. Isso significa que não tinham autonomia para propor ações à Justiça. A Constituição de 1988 foi a primeira a reconhecê-los como sujeitos de direito.

O julgamento do Marco Temporal, além disso, coloca o Brasil sob escrutínio internacional. Em texto no portal UOL, o jornalista Jamie Chade lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pressiona pela derrubada da tese por entender que ela “contradiz as normas internacionais e interamericanas de direitos humanos, em particular a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas”.

Se decidir pela derrubada definitiva do marco temporal, o STF pode, teoricamente, por fim aos processos judiciais que questionam o direito dos indígenas à terra. Seria um respiro bem-vindo, capaz de pacificar conflitos.

Você vai gostar também:

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

3 abolicionistas negros que você precisa conhecer

Para entender

10 min

Imagem ilustrativa
Mulheres

Rafael Ciscati

Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção

Entrevista

11 min

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA

Notícias

8 min