Para democratizar ensino, alunos de cursinhos populares voltam à sala de aula
Depois de ingressar na faculdade, estudantes retornam como professores. Construídas por jovens da periferia de São Paulo, iniciativas querem mudar a cara das universidades
Bárbara Diamante *
11 min
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Passava pouco das 14h de uma quarta-feira nublada quando o professor Pedro Araújo conectou o notebook ao projetor. Em uma sala da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), cedida especialmente para as aulas do cursinho popular, um pequeno grupo de 10 alunos assistia à aula de geopolítica e atualidades.
O assunto do dia era exploração colonial. Na tela, Pedro exibia um mapa do continente africano. A prova de português do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tinha sido aplicada no final de semana anterior. Cobrara, na redação, que os estudantes falassem sobre os desafios para a valorização da herança africana no Brasil. Ainda tímidos, os estudantes observavam com atenção o professor substituto falar sobre territórios colonizados. Pareciam preocupados: dali a quatro dias, aconteceria a segunda fase do vestibular.
Pedro conhece bem essa sensação. Não muito tempo atrás, ocupou aquelas mesmas cadeiras. Em 2022, era ele quem acompanhava as aulas do cursinho da EACH com o objetivo de ingressar na faculdade. Nascido em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, Pedro foi criado junto com o irmão mais novo pela mãe. Filho de professora, sonhava seguir os passos dela na profissão.
Apaixonado por história, prestou o vestibular para o curso no final de 2021, mas acabou não passando. Apesar da frustração, continuou pesquisando sobre vestibulares e conheceu o cursinho da EACH através de aulas no Youtube. O cursinho surgiu em 2015, por meio da iniciativa de estudantes da própria universidade, e tem como objetivo atender sobretudo estudantes pretos, pardos, indígenas e transexuais de baixa renda da zona leste de São Paulo. Ao todo, contabilizando as turmas do vespertino e do noturno, atende 117 alunos em 2024.
Hoje, já na faculdade, Pedro trabalha como estagiário de Gestão de Políticas Públicas. Ele descobriu essa carreira no próprio cursinho da EACH, durante os debates com os professores que lhe deram aula. Quando soube que o cursinho precisava de alguém que ensinasse geopolítica, não titubeou. Mais do que uma maneira de iniciar o sonho de dar aulas, o retorno significava contribuir com a missão do cursinho, que considera muito maior do que apenas o ensino. “O cursinho mudou minha vida, profissional e pessoal”, diz ele. “Queria dar isso a outras pessoas”.
Casos como o de Pedro se repetem em outros cursinhos parecidos com esse. Chamados de cursos populares ou comunitários, eles têm, a princípio, o objetivo de preparar estudantes para ingressar em universidades concorridas. São gratuitos ou muito mais baratos que seus congêneres comerciais. No caso da EACH, há um processo seletivo, mas não se paga mensalidade. Em outros, como no Cursinho Popular do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a mensalidade não passa de R$130,00, incluindo o valor dos materiais didáticos
Num país desigual, onde o acesso ao ensino superior é requisito quase obrigatório a quem almeja um salário justo, os cursinhos populares acabam se convertendo em instrumentos de combate às desigualdades sociais.
Não raro, os alunos que passam por seus bancos retornam, anos depois, como professores. A maioria diz querer contribuir, por meio desse trabalho, com transformações coletivas.
Foi essa perspectiva que levou Ana Milossi, amiga de Pedro, a se tornar coordenadora da Rede Ubuntu, outro cursinho popular. Ana frequentou o cursinho em 2023. Em março de 2024, descobriu que havia sido aprovada no vestibular. Na época, estava internada com problemas pulmonares. Ficou sabendo da própria aprovação através de uma mensagem enviada por um dos coordenadores do Ubuntu.
Ana já pensava no ensino superior desde os tempos em que cursava administração de empresas em uma escola técnica. O objetivo sempre foi conseguir um emprego bem remunerado e entrar na faculdade. Muito provavelmente, uma faculdade particular: Ana nem cogitava ingressar numa instituição pública. Descobriu o cursinho popular ao acaso, por uma postagem nas redes sociais de um colega.
A Rede Ubuntu surgiu em 2016 e atualmente tem cinco polos, com uma média de 80 alunos em cada um deles. As aulas ocorrem em espaços disponibilizados por paróquias ou Centros de Educação Unificada (C.E.U) da prefeitura de São Paulo. Todas as unidades recebem nomes de personalidades marcantes para a comunidade local e estão dispostas ao redor da zona sul de São Paulo, nos bairros Jardim Ângela, Capão Redondo, Itapecerica da Serra, Vila do Sol e Parque Novo Santo Amaro
Não demorou muito para Ana começar a frequentar as aulas no Polo Dona Edite, localizado no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo. Rapidamente, ele se tornou um divisor de águas; a jovem começou a compreender melhor o sistema educacional e a considerar a possibilidade de ingressar na universidade pública.
Além de aumentar o contato com informações pelas quais ela já se interessava, o curso proporcionou a convivência com quem tinha o mesmo propósito e vivia a mesma realidade que Ana. Os sentimentos provocados ao conhecer aquelas pessoas foram os de pertencimento e apoio mútuo.
A ideia de retornar ao Ubuntu surgiu logo que ela entrou na faculdade. No universo da educação popular, esse é um movimento comum: cerca de 90% do corpo docente da Ubuntu é formado por ex-alunos.
Para Ana, retornar como coordenadora foi um meio de passar adiante “pelo menos 1%” de todo o conhecimento que adquiriu nos seus tempos como aluna. O ambiente da universidade pública, diz ela, ainda é bastante elitizado. Ela sentiu falta de conviver com pessoas que tinham vivências parecidas com as dela. Voltou ao cursinho na esperança de mudar esse quadro: “Eu preciso participar para ter mais dos meus na universidade”.
A lógica excludente dos vestibulares
Os cursinhos pré-vestibulares surgiram na década de 1950, quando a demanda por vagas no ensino superior já era maior do que a oferta. O objetivo era exclusivamente preparar os alunos para o vestibular.
Já os cursinhos comunitários passaram a tomar forma somente em 1990. Welber de Barros, psicanalista e mestre em educação, conta que esse novo modelo surgiu pautado na educação popular cunhada por Paulo Freire. Defendia a ideia de que, além de impulsionar o ingresso dos estudantes nas universidades, a orientação deveria ser crítico-emancipadora. Isto é: não deveria se encarregar apenas de repassar os conteúdos que são cobrados na prova mas, também, gerar reflexão e instigar o pensamento político.
Ao longo dos anos, o escopo de atuação dos cursinhos se expandiu. Eles se envolveram, por exemplo, nas discussões sobre a adoção de ações afirmativas. Apoiaram movimentos sociais na defesa de cotas raciais e sociais nas universidades. “Os cursinhos sempre estiveram à frente dessas pautas, de uma forma muito genuína”, diz Welber.
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Outra mudança promovida pela educação popular foi a isenção da taxa de inscrição para vestibulares, como ENEM e Fuvest, a partir dos anos 2000. Somente em 2013 é que foi aprovada uma lei prevendo que estudantes com renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio sejam isentos das taxas de inscrição no vestibular.
Quando o aluno não consegue pedir a isenção, é comum que os cursinhos populares façam vaquinhas, para arrecadar o valor das inscrições.
Para Welber de Barros, apesar da atuação positiva, os cursinhos populares são reflexo da lógica excludente dos vestibulares, e apontam a necessidade de democratizar o ensino. “O grande objetivo do cursinho popular é o de não ter que existir mais”, já que a extinção deles seria resultado de uma educação mais inclusiva, afirma Barros.
Educação comunitária como meio de transformação
Débora Dias também foi impactada por essas iniciativas. Filha e neta de empregadas domésticas, frequentou escolas públicas e colégios particulares como bolsista. Criada na região do Parque São Rafael, na zona leste de São Paulo, cresceu com a ideia de que educação era algo importante, e com o anseio de frequentar o ensino superior.
Sempre engajada em projetos, iniciou sua jornada no movimento estudantil ao conhecer a UNEafro em 2016, através de um amigo educador. Foi aluna durante um ano e, desde então, está envolvida com a organização.
“Eu fui uma jovem negra, de quebrada, sapatão, que foi enxergada e que teve a vida transformada pela educação popular”, diz Débora. Por ter sido a primeira de sua família a ingressar no ensino superior, ela vê sua conquista como o rompimento de um ciclo e uma porta de entrada para melhores condições de trabalho.
Começar a licenciatura em Ciências Sociais em uma universidade federal foi bastante significativo. Ela lembra até hoje a exata cena de quando contou à família que havia passado no vestibular. Naquele dia, estava almoçando com a avó e a tia. Parou tudo o que estava fazendo para ligar para sua mãe, que estava no trabalho. “Teve uma comoção coletiva”, diz. A comemoração se estendeu aos educadores e ela recorda com carinho que foi bastante acolhida por todos.
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Ao voltar à Uneafro, dessa vez como educadora, Débora resolveu preencher uma lacuna na organização de estudo. Ainda como estudante realizou pesquisas sobre aprovação, identificou diversos métodos de aprendizagem e os sistematizou.
Ela brinca que criou uma “metodologia de organização de estudo do pré-vestibular de quebrada”, considerando que a maioria dos estudantes vive uma realidade atribulada, com pouco acesso às chamadas zonas neutras de estudo, como bibliotecas. “Tem o cachorro latindo, sua mãe gritando, falta espaço adequado para estudar”, explica, lembrando de suas próprias dificuldades.
Encontrar um jeito de adaptar a aprendizagem para essas ocasiões foi uma maneira de otimizar a absorção do conteúdo e, assim, garantir resultados mais eficazes. Como professora, ela passou a transmitir o método a outros estudantes que têm vivências semelhantes às dela.
Para os egressos que retornam à sala de aula, os cursinhos populares acabam se tornando lugares de aprendizado conjunto. Trata-se da primeira experiência profissional de boa parte deles. No contato com os alunos — cuja idade regula com as deles — trocam informações, e desenvolvem novos jeitos de aprender e ensinar.
Desenvolvem, também, uma relação de cumplicidade. Algo importante num momento da vida em que o jovem se vê obrigado a fazer escolhas difíceis: como, por exemplo, decidir qual carreira seguir. Pedro Araújo, do cursinho da EACH, lembra que foi o contato com os professores que o ajudou a persistir nos estudos. A família preferia que ele abandonasse as aulas e encontrasse um emprego. “Eu cheguei próximo de desistir. Quando eu pensava nisso, eles [voluntários do cursinho] aconselhavam, motivavam ou acolhiam”.
Hoje, é esse o tipo de incentivo que ele busca transmitir aos estudantes. Naquela quarta-feira, já no fim da aula, Pedro quis saber em que áreas seus alunos gostariam de trabalhar. Em tom descontraído, e nada desinteressado, recomendou o curso de Gestão de Políticas Públicas: o mesmo que ele cursa. A ideia é, já em 2025, ter mais pessoas com histórias semelhantes à sua circulando pela universidade.
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
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