Foto de topo: Abdias Nascimento com a equipe do Teatro Experimental do Negro (Divulgação/Ipeafro)
Emanuel e Margarida trocam afagos a caminho de casa, ansiosos pelo casamento que se aproxima. De repente, a polícia os para. Os policiais acreditam que a mulher está sendo assaltada e, apesar das explicações, levam o noivo para a cadeia. Emanuel é negro, Margarida é branca. A cena traduz a desconfiança diária a que pessoas negras – homens negros, em especial – são submetidas. Apesar de sua atualidade, faz parte de uma peça escrita em 1951:
Sortilégio (Mistério Negro), de
Abdias Nascimento, escritor, pintor, dramaturgo e referência no ativismo negro no Brasil.
Censurada em 1953 por sua “imoralidade”, Sortilégio foi encenada apenas em 1957 pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), companhia criada por Abdias no Rio de Janeiro. Anos mais tarde, Abdias reescreveria a peça após uma visita a Nigéria na década de 1970, onde conheceu de perto a cultura Iorubá. “Ele introduziu novos personagens, mudou a participação de gênero no final da peça e pôs o quilombo no palco”, conta Elisa Larkin. Viúva de Abdias, Larkin é norte-americana, escritora, pesquisadora e atual presidente do Ipeafro, instituto destinado à preservação da cultura africana e do acervo do intelectual.
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Após ser reescrita, a obra seria publicada somente nos EUA, em 1994. A própria Larkin cuidou da tradução para o inglês. Justamente essa segunda versão, Sortilégio: Mistério negro de Zumbi redivivo, acaba de ser reeditada e transformada em livro pela Editora Perspectiva. O relançamento acontece às vésperas do aniversário do autor: se estivesse vivo, Abdias Nascimento completaria 110 anos anos em março.
A espinha dorsal da peça, que se mantém em ambas versões, está no confronto interno de Emanuel, personagem principal, entre duas visões de mundo: a cristã, branca e ocidental e a africana e negra. Emanuel é advogado e faz parte da classe média carioca. Na tentativa de entrar nessa dinâmica dominada pela branquitude, casa com Margarida. Por ser branca, a mulher favorece a validação social do marido no meio em que vivem. O relacionamento tem um impeditivo: Efigênia. A mulher negra é o grande amor da vida do personagem, mas ambos decidem terminar o romance porque desejam ascender na sociedade por meio do branqueamento racial.
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Efigênia não desiste por completo de Emanuel e planta dúvidas nele sobre a fidelidade de sua esposa. Além disso, acusa Margarida de ter abortado um filho do casal por medo da cor que ele teria. O homem, então, assassina Margarida. Para fugir da polícia, se esconde em um terreiro, onde a peça transcorre. O personagem lembra das escolhas da sua vida na tentativa de se libertar da colonização que lhe foi imposta ao som de pontos de candomblé – música guiada por tambores tocada nos rituais da religião. “Ele passa por um processo de transformação regido pela mãe de santo, pelas filhas de santo e pelo Orixá Exu, para que exista a possibilidade da criação de uma comunidade”, diz Larkin.
Dentre as diferenças entre as duas versões, há novos pontos de candomblé compostos por Abdias e musicados pelo sambista Nei Lopes. Além disso, o final da peça foi alterado para dar destaque a uma “vitória coletiva” liderada por Efigênia.
Na versão original, a história termina quando Emanuel tira as roupas que representam a branquitude e, nu, é sacrificado em um ritual mágico que buscava valorizar suas raízes africanas. Na época em que foi encenada, Larkin conta que havia um grande temor no governo e no universo das artes sobre a repercussão da obra entre a população negra carioca. “Achavam que a ‘negrada’ ia descer das favelas e criar bagunça em frente ao Teatro Municipal”. Por isso, conta ela, os críticos descreveram Emanuel como um “herói individual”, à moda dos heróis das tragédias gregas.
Essa leitura não agradava Abdias, que entendia Sortilégio (Mistério Negro) como um retrato das relações raciais e do negro no Brasil. Em vida, o autor descreveu a peça como um “nervo vital nas relações raciais brasileiras [que retrata] o choque entre a cultura e a identidade de origem africana e aquela da sociedade dominante eurocentrista”.
Sortilégio: Mistério negro de Zumbi redivivo, a segunda versão, muda de perspectiva. Durante o sacrifício de Emanuel, Efigênia permanece ao seu lado empunhando a espada de Ogum, orixá guerreiro. Segundo a interpretação de Larkin, a morte do personagem principal e sua passagem para o Orum, reino dos orixás, enquanto está rodeado de mulheres negras do candomblé, mostra a formação de um quilombo. “Abdias alterou o final da peça para dizer a esses intelectuais brancos ‘venham cá, é sobre o meu povo sim’”.
Tanto é sobre seu povo que a cena em que Emanuel é parado pela polícia enquanto caminha com Margarida para casa, descrita no início dessa reportagem, foi uma situação enfrentada por um dos integrantes do Teatro Experimental do Negro (TEN). Fora dos palcos, o co-fundador do TEN Aguinaldo Camargo também era advogado e delegado. Em dado momento de sua trajetória, teve suas profissões postas à prova e foi preso sem evidências, após ouvir a mesma sentença do personagem: “Bota o doutor africano no xadrez”.
Elisa acrescenta que Sortilégio não ajuda apenas a compreender o que pessoas negras vivenciam no dia a dia, como a violência policial e intolerância religiosa. A peça é uma ferramenta para entender como funciona a “morte cultural” enfrentada pela população negra do Brasil. Isto é, as heranças que ela ainda carrega da colonização, como o desejo de se embranquecer, o desprezo por tudo que se conecte às suas origens e o ódio sobre a própria aparência. “O Emanuel precisa se identificar com padrões de comportamento e de auto expressão da sociedade branca hegemônica para quase fazer parte dela. Ele nunca sai desse ‘quase’ e jamais ganha a legitimidade da branquitude, apesar de rechaçar os seus próprios valores ancestrais.”
A concepção da obra
Quando Abdias Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro, em 1944, seu principal objetivo era denunciar a segregação e o preconceito racial na dramaturgia. Na época, os palcos de teatro pintavam pessoas brancas com tinta preta para representar personagens negros. Estes, quando apareciam nos enredos, tinham papéis humilhantes ou estereotipados, como empregados, moradores de rua, criminosos e alcoólatras.
Havia poucos artistas negros que poderiam integrar o corpo do teatro. Assim, o TEN ofereceu cursos profissionalizantes que transformaram desempregados, operários e trabalhadores em atrizes e atores. Faltava o principal: a obra que seria encenada. Já que não havia nenhuma dramaturgia no Brasil que colocasse a população negra em destaque, “O Imperador Jones”, do estadunidense Eugene O’Neill, estreou como a primeira peça do Teatro Experimental do Negro.
Para dar continuidade ao projeto e tentar suprir a falta de peças que focalizassem a cultura afro-diaspórica brasileira, Abdias escreveu Sortilégio (Mistério Negro). A vivência das pessoas negras no Brasil, o que ele denominou como seu “oculto coração”, a perda identitária e a tentativa de refazer o caminho da negritude eram temas que precisariam ser abordados nos palcos sob essas condições – um corpo teatral majoritariamente negro. Afinal, como declarou o autor em ensaio publicado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1997, “A experiência de ser negro num mundo branco é algo intransferível”.
A peça foi encenada apenas uma vez, em uma noite de agosto de 1957, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Elisa aponta que a falta de outras encenações é um dos obstáculos que dificultam a repercussão da obra. “Durante toda a vida do Abdias, enquanto ele estava vivo e algum tempo depois disso, sempre tentamos relançar a peça. Nunca houve interesse.”
O lançamento recente foi uma janela de oportunidade que a pesquisadora descreve como “uma bolha de curiosidade” do universo acadêmico e artístico. “Passou a ser moda e a valer alguma coisa pensar sobre o racismo que o Abdias vem falando desde 1930”, afirma.
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati