Pessoas presas podem publicar livros? Essa associação de egressos quer garantir que sim
Formada por escritores que passaram pela prisão, Academia Brasileira de Letras do Cárcere quer defender, no STF, direito do preso a se expressar. Corte discute se pessoas que cumprem pena podem publicar livros

Rafael Ciscati
10 min
(atualizado 04/07/2025 às 20h06)

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Foto de topo: o rapper e escritor Sagat B. Ele quer biblioteca só com livros escritos por pessoas presas (reprodução Instagram)
Era ainda começo dos anos 2010 e o carioca Sagat B cumpria pena no Instituto Penal Vicente Piragibe, zona oeste do Rio de Janeiro, quando decidiu se envolver em um projeto de incentivo à leitura e escrita dentro da prisão.
A ação era desenvolvida por uma ONG carioca e incluía uma série de atividades: de aulas de música a uma espécie de clube de leitura, do qual apenas sete presos acabaram participando. Sagat, que até ali nunca terminara um livro na vida, se interessou pela proposta. Ao cabo de uma semana,devorou seu primeiro volume: O Alienista, de Machado de Assis. Encantado pelo mundo das letras, aproveitou para se inscrever num concurso de música promovido pelo projeto. A composição vencedora seria trilha sonora de um desfile de moda, marcado para acontecer durante a conferência climática Rio +20, que reuniu chefes de Estado no Rio de Janeiro em 2012 para falar sobre aquecimento global. Sagat escreveu uma letra em que refletia sobre os desejos para quando saísse da prisão. Ganhou.
Hoje, já em liberdade, Sagat B virou rapper e publicou um livro de memórias. Em O Bandido que virou artista, o músico rememora a vida desde os tempos de infância. É peremptório: não fosse o incentivo à escrita, que recebeu enquanto cumpria pena, sua trajetória seria outra. “A literatura foi essencial para a minha ressocialização”, diz.
Por isso, foi com um bocado de preocupação que ele soube de uma discussão que hoje se desenrola no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte debate se pessoas encarceradas podem publicar obras literárias enquanto cumprem pena.
A história começa em 2019, quando um detento da Penitenciária Federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, tentou publicar um livro, com mais de mil páginas, escrito atrás das grades. O diretor da penitenciária não deixou. Na época, disse temer que o manuscrito (que, por três anos, ficou sob análise de uma equipe pedagógica dentro da prisão) incluísse mensagens cifradas, direcionadas a organizações criminosas.
O caso foi levado à Justiça que, em primeira e segunda instâncias, deu razão ao diretor da penitenciária. Para os desembargadores do Tribunal Regional Federal da Quinta Região, que analisaram o caso, a decisão da penitenciária é respaldada pelo Manual do Sistema Penitenciário Federal. Trata-se de um documento que estabelece procedimentos adotados no cotidiano desses presídios. No seu artigo 161, o texto diz que: “Será permitida ao preso a produção literária autoral como escrita de biografia, poemas, contos e outros dessa natureza, desde que autorizada pela Direção da Penitenciária Federal, sendo vedada a saída do material ou sua divulgação”.
Criado em 2006, o sistema penitenciário federal recebe condenados considerados de alta periculosidade. Em geral, por causa dos seus vínculos com facções criminosas. O Manual que descreve os procedimentos adotados nesses presídios estabelece uma série de restrições. “Ele é muito focado na questão da segurança e da disciplina”, diz a advogada Cátia Kim, coordenadora geral de programas do Instituto Terra Trabalho e Cidadania.
Ao proibir publicações, o sistema parte do princípio de que comunicações do detento com a sociedade podem causar dissabores: carregar recados para grupos criminosos, fazer apologia ao crime ou gerar tumulto entre companheiros de cela . Excetuando-se o texto do Manual, no entanto, não há nenhuma lei ou norma que impeça uma pessoa que cumpre pena de publicar o que escreve. “Parte-se,então, do princípio básico de que, se não há proibição, a prática é permitida”, afirma Kim.
É justo esse o ponto em discussão na Suprema Corte: caberá aos ministro decidir se essa restrição, para a qual não existe previsão legal, desrespeita a Constituição. A defesa do detento escritor afirma tratar-se de um caso de censura prévia, em que se desrespeitou o direito do autor à liberdade de expressão.
Embora o caso julgado envolva uma pessoa presa no sistema penitenciário federal, a decisão dos ministros deve se estender, também, a quem cumpre pena em presídios estaduais. No caso deles, não há muitas informações sistematizas. As normas que governam o dia-a-dia dos detentos nessas penitenciárias costumam ser definidas pelas secretarias estaduais de administração penitenciária, conta Kim. “Decisões como essa – sobre autorizar ou não a publicação de um livro – são tomadas num âmbito mais executivo”. Ela diz que a sociedade civil até consegue intervir na elaboração dessas regras, mas o espaço para isso é bastante limitado.
Tão logo soube do imbróglio, Sagat B conta que passou a mão no telefone e mandou uma mensagem ao colega Edson Souza Júnior. Advogado e sobrevivente do cárcere como o rapper, Souza é um dos integrantes da Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC).
Criada em 2024, a instituição reúne pessoas egressas do sistema prisional que mantêm produção literária. Sagat B e Souza, ambos autores publicados, ocupam as cadeiras número dois e a número 18, respectivamente.
Souza explica que o objetivo da Academia é “defender a produção literária de presos e egressos”. “A literatura é também um instrumento de ressocialização”, afirma. “Talvez o único disponível hoje”.
Por isso mesmo, a restrição imposta pelo sistema penitenciário federal soou acintosa aos ouvidos dos acadêmicos. Quando recebeu as mensagens de Sagat B, Souza já tinha se inteirado da ação em curso no STF. E preparava uma petição requerendo a inclusão da ABLC como “amiga da Corte” — ou seja, como uma entidade capaz de fornecer informações importantes para a condução do processo. O pedido está em análise. Se aceita, a ABLC vai defender, diante da Suprema Corte, o direito de pessoas encarceradas a escrever e publicar seus escritos.
***
A ideia de criar a ABCL partiu do desembargador aposentado Ciro Darlan, que via na literatura um instrumento de transformação. A instituição não tem sede própria e seus membros costumam se encontrar por videoconferência. Frequentemente, participam de eventos sobre literatura, dentro e fora de prisões.
Tal qual na Academia Brasileira de Letras, quem quiser ingressar na ABLC precisa ser eleito pelo grupo. Isso feito, passa a ocupar uma cadeira nomeada em homenagem a algum literato célebre com passagem pelo cárcere.
A cadeira número 30, por exemplo, homenageia a modernista Patrícia Galvão, a Pagu. Membro do Partido Comunista, Pagu foi presa pelo governo de Getúlio Vargas depois de participar de uma greve em defesa dos estivadores de Santos. Outro comunista, Jorge Amado chegou a ser preso em três ocasiões. É dele a cadeira 8.
A cadeira 2, ocupada por Sagat, homenageia Nelson Mandela. Já a cadeira número 1 leva o nome de Graciliano Ramos. No livro Memórias do Cárcere, Graciliano descreve o periodo que passou preso sob a ditadura Vargas. Quem ocupa esse assento é, provavelmente, o acadêmico mais célebre da ABLC: Marco Nepomuceno, o Marcinho VP. Um dos líderes do Comando Vermelho, Nepomuceno já tem três livros publicados. Vai lançar o quarto no próximo dia 12 de julho. Intitulado A cor da Lei, o volume conta a história fictícia de Eduardo SaintClaire, um advogado idealista que “veste a beca para mostrar que a Justiça pode ter cor humana”, de acordo com o material de divulgação do livro.
Preso desde 1996, Nepomuceno cumpre pena num presídio federal. Ainda assim, foi autorizado a publicar. Souza, da ABLC, considera que essa autorização — embora justa — revela o quanto o funcionamento do sistema prisional pode ser arbitrário. “Independentemente do que diga o Manual, na prática, quem decide se a pessoa vai publicar ou não é o diretor do presídio. E ele não precisa justificar a decisão”.
A proibição também contrasta com uma resolução publicada em 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que incentiva pessoas encarceradas a ler e participar de atividades educativas em troca de redução da pena. Projetos assim ainda são raros: Kim, do ITTC, destaca iniciativas bem-sucedidas em São Paulo e em Florianópolis, além de outros casos pontuais.
Nessa dinâmica de, ora reconhecer o potencial ressocializador da literatura, ora restringir a produção litéraria, o sistema penitenciário deixa transparecer seu caráter contraditório, afirma Marina Dias, diretora executiva do Instituto de Defesa do Direitos de Defesa (IDDD). “Alguns estados – como São Paulo, Paraná, Espírito Santo e Paraíba – têm realizado concursos literários, promovendo o valor da escrita da população encarcerada”, lembra ela. Outros, diz, impedem que os escritos sejam compartilhados. “Mas, se uma das finalidades mais potentes da escrita é a partilha, qual é o sentido de incentivar esse exercício nessas condições? Escrever é uma forma de existir no mundo. Negar a publicação de um escrito é mais uma maneira de apagamento da existência das pessoas presas”.
Dias destaca que a Lei de Execuções Penais, por fim, garante o direito da pessoa encarcerada à cultura e educação. Frente a isso, diz ela, não faz sentido tentar controlar o desejo da pessoa presa de simplesmente escrever o que viveu. “O motivo oficial, de que a proibição visa à manutenção da disciplina e da segurança das penitenciárias, me parece apenas um pretexto para manter a política de sigilo sobre o que acontece dentro das prisões”.
Os membros da Academia Brasileira de Letras do Cárcere defendem que a solução para o impasse consiste em, simplesmente, respeitar o direito do preso à liberdade de expressão. “Afinal, a pena de prisão não tira da pessoa outros direitos fundamentais”, diz Souza. Ele faz concessões: admite que, antes de publicados, os textos sejam avaliados pelas equipes pedagógicas das penitenciárias. “Mas é preciso que se estabeleça um tempo limite para essa análise. E que os advogados do preso tenham acesso a ela”, diz. A ideia é impedir que os manuscritos fiquem sob avaliação indefinidamente.
Sagat B, por sua vez, sonha mais longe. O “bandido que virou artista” acha que, em cada penitenciária, deveria haver uma biblioteca formada apenas por livros escritos por detentos. “Livros que falem da realidade dentro das prisões. Seria muito mais interessante”, diz. “ Se livros assim existissem, o clube de leitura de Vicente Piragibe não teria sete participantes. Teria mais de 300”.
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