É preciso aproximar evangélicos de pautas progressistas, diz ativista
A cientista da religião Valéria Vilhena aponta que mulheres evangélicas podem ser propulsoras de mudanças sociais, e critica a invasão da política pelo "machismo sacramentado"
Maria Edhuarda Gonzaga *
13 min
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Em 1998, Valéria Vilhena sentou na cadeira da faculdade para assistir sua primeira aula de teologia. A pergunta tradicional das aulas introdutórias logo a atravessou: “por que você escolheu esse curso?”. Ela, questionadora e curiosa, respondeu que estava ali para não ser mais enganada. Na época, vivia um dilema de fé: a igreja que frequentava mostrava-se um “espaço de amor e dor”, conta.
Valéria entrou no movimento feminista buscando entender as violências que sofreu dentro de ambientes religiosos por líderes espirituais em que confiava. A partir daí, diz que caminhou entre dois mundos. De um lado, ouvia que ser feminista e evangélica era pecado. De outro, acusavam-na de fazer parte da religião do opressor. “Eu não cabia em lugar nenhum”.
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Em 2015, Valéria teve a ideia de fundar o coletivo Mulheres Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG). O grupo surgiu com o intuito de combater os discursos fundamentalistas propagados de maneira crescente entre as evangélicas, e para fazer frente à violência velada que líderes espirituais praticavam contra elas. Aos poucos, a cientista da religião viu o EIG se tornar também um ambiente seguro no qual as “mulheres de fé”, como apelidou, poderiam interpretar os textos cristãos à luz do protagonismo feminino e do feminismo.
Atualmente o coletivo é liderado por Valéria e composto por mulheres plurais, tanto em sexualidade quanto etnia. Afinal, como salienta, é imprescindível ouvir diferentes pontos de vista para construir uma fé inclusiva e libertadora. Para além de fazer releituras bíblicas entre si, as “mulheres EIG” promovem encontros com lideranças progressistas para discutir sobre política e religião em termos democráticos. Também reivindicam espaço nos ambientes públicos de decisão na tentativa de criminalizar a “violência espiritual” contra mulheres, ou seja, o assédio moral ou sexual (e outras formas de violência mais sutis) praticados contra mulheres por lideranças religiosas masculinas. O coletivo cresce, assim como as mobilizações para o debate entre evangélicos. Valéria conta que, hoje, os “homens EIG” já se organizam para discutir masculinidade tóxica e os impactos negativos da misoginia estrutural sobre os homens. “Mas eles não têm poder decisório no nosso movimento”, acrescenta rindo.
Valéria salienta que o “machismo sacramentado”, ou seja, a dominação patriarcal e o incentivo à submissão feminina em nome de Deus, transbordou para as estruturas políticas. Um levantamento realizado pelo Centro Feminista de Estudo e Assessoria (Cefea), divulgado no início do ano, constatou que, dos 513 deputados federais eleitos no último pleito, 323 já trataram de religião em postagens nas redes sociais. A prática, inclusive, não se limita a parlamentares evangélicos: nos cálculos de Cfemea, entre os deputados que apresentam algum vínculo religioso, 46% se declaram católicos, e 24,6% se dizem evangélicos.
Na avaliação de Valéria, diante desse cenário, lutar por um estado laico se mostra urgente.
Brasil de Direitos: De onde surgiu a ideia de criar o movimento EIG? Como vocês perceberam a necessidade de debater democracia e movimentos sociais entre as mulheres evangélicas?
Valéria Vilhena: O movimento EIG nasceu em 2015, no Fórum Pentecostal Latino Caribenho, aqui em São Paulo. Nós estávamos presentes e já vínhamos acompanhando as discussões de gênero que ferviam na política. No Fórum, percebemos um interesse nesse tema em algumas mesas. Eu me reuni com as dezessete mulheres presentes, líderes do Brasil e de toda América Latina, majoritariamente de igrejas pentecostais. Conversamos e propus a criação da EIG justamente para monitorar essas questões de gênero e como elas estavam chegando às nossas mulheres, igrejas e periferias onde moramos. Surgimos nesse cenário no qual a “ideologia de gênero” estava no processo de se tornar essa grande inimiga destruidora de famílias, que veio junto com um levante contra os movimentos feministas e, consequentemente, contra a própria democracia e o estado de direito.
Como vocês perceberam a necessidade desse recorte religioso dentro do movimento feminista?
Eu estudava as questões de gênero desde 2007. O tema do meu mestrado era sobre violência doméstica entre as mulheres evangélicas. Inclusive, quando eu comecei, levei um susto, porque nunca tinha parado para pensar sobre a conexão entre religião e violência. Achamos que religião é lugar de amor, acolhimento e paz, mas eu fui percebendo que os discursos religiosos eram instrumentalizados para nos deixar em condições de violência e risco de vida. Somos ativistas e, na época, a EIG foi quase inovadora porque as mulheres evangélicas não foram educadas e muito menos incentivadas a buscar direitos, a ter um ministério ou um trabalho que fosse profético/denuncista.
Como trabalhar a fé dessas mulheres sem ignorar o papel do cristianismo na dominação das minorias?
Não dá para deslocar a questão religiosa quando vamos analisar e refletir sobre a nossa sociedade porque somos frutos de uma colonização exploratória, escravocrata, racista, patriarcal e, sobretudo, cristã. Trabalhamos com a teologia da libertação feminista e a metodologia da leitura popular da Bíblia e, a partir disso, estudamos a religião a partir dos nossos próprios corpos e experiências. Não ficamos mais esperando que os homens brancos – que historicamente sempre estiveram no poder – nos conectem a Deus ou façam teologias para nós. Voltamos em textos que o tempo todo foram usados para nos humilhar, subalternizar e nos deixar submetidas a condições de violência e questionamos o contexto social, econômico e político daquele texto. Uma vez, por exemplo, em uma reunião com as coordenadoras da EIG, li um capítulo do livro de números, do Antigo Testamento, que dizia “como eu detestarei quando Deus não detesta? Como posso amaldiçoar a quem Deus não amaldiçoou?”. Até no Antigo Testamento podemos ver esse caráter amoroso de Deus que devemos resgatar e aplicar nas nossas lutas.
Como funciona a recepção das igrejas perante esse despertar da consciência das mulheres?
Os nossos espaços são espaços de tomada, que ninguém nos dá – muitas vezes, nem os progressistas. Tem mulheres EIG que foram expulsas ou excluídas das suas igrejas porque começaram a participar do movimento, por exemplo. Há uma questão paradoxal porque, ao mesmo tempo que estamos nesse ambiente ou instituição religiosa que pode ser mais um espaço de violência, é difícil reconhecermos isso já que lá também é um lugar de acolhimento, que cede cestas básicas e ora contra enfermidades familiares. Aquele pastor ou pastora que comete a violência é também quem nos acolhe em momento de dor e falta. Ao mesmo tempo, quando fiz a denúncia das violências que sofri, ninguém acreditou em mim.
O que é violência espiritual? Quais são as reivindicações da EIG para combatê-la?
Chamamos de violência espiritual a prática de líderes religiosos se utilizarem do seu status religioso para cometer crimes, assediar e enganar mulheres. Eu sou fruto de muitas violências institucionais nesse sentido: além de ter sido negada a fala, sofri assédio moral e sexual e também um sequestro relâmpago a mão armada por lideranças da igreja. Não há mulheres EIG que não tenham passado por algo assim. Já levamos para várias instâncias de poder a proposta de tipificar crime na Lei Maria da Penha, inclusive para o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Embora reconheçamos que, pelo menos até o último censo, quase 90% da nossa população brasileira se identifica como cristã, essa é uma necessidade interreligiosa: vemos casos de outras religiões que o líder utiliza do seu espaço de poder para cometer crimes, desde o racismo até abuso sexual contra mulheres e meninas.
Não podemos esquecer que o Brasil, sendo majoritariamente cristão, também está em quinto lugar no ranking mundial de feminicídios. Então de que cristianismo estamos falando?
Como funciona o trabalho das Evangélicas pela Igualdade de Gênero no enfrentamento ao discurso conservador que cada vez mais caracteriza as grandes lideranças e grupos cristãos?
Chamamos de tripé de atuação. Em primeiro lugar, trabalhamos com a nutrição da nossa fé: fazemos cultos mensais de espiritualidade feminista com esse novo olhar e interpretação sobre os textos bíblicos. Todo o nosso culto é construído pela equipe que chamamos de comissão de espiritualidade e liturgia, composta apenas por mulheres. Somente as mulheres dirigem a liturgia e ministram a ceia. Nós subvertemos tudo que nos negaram historicamente por ser um lugar masculino. Também fazemos a formação continuada em teologia feminista com as nossas mulheres. O terceiro pé é o acompanhamento das denúncias contra políticas que não sejam em prol da vida das mulheres. Estamos atentas a tudo que entendemos como prejudicial, não só o enfrentamento das violências diretas contra mulheres, porque é preciso mais. A Lei Maria da Penha é uma grande aliada, mas é preciso avançar com ela, de modo que ela seja cumprida. Queremos ir além dos direitos sexuais e reprodutivos, queremos falar de justiça reprodutiva. Não é fácil, não somos muitas, mas se eles precisaram fazer todo esse investimento midiático e dentro das nossas igrejas contra os coletivos feministas é porque estamos incomodando.
Como vocês guiam o trabalho de formação com as mulheres evangélicas que possuem pensamentos conservadores ou até fundamentalistas?
Nós trabalhamos com estratégias discursivas e temas específicos mas, mais do que isso, nos colocamos como iguais. Somos todas irmãs e mulheres de fé. Começamos nossa abordagem mostrando o que nos aproxima. Tentamos ir prontas para construir um espaço seguro para essas mulheres, no qual elas possam ter dúvidas e nos questionar. Adequamos a linguagem e desmontamos aos poucos esse demônio construído sobre o feminismo. As mulheres reproduzem o senso comum por sobrevivência: trabalham todos os dias em serviços pesados, sustentam sozinhas uma casa, às vezes só o que elas querem mesmo é se alienar. Muitas das nossas irmãs evangélicas que defendem interesses da elite mal conseguem cuidar dos seus próprios filhos.
Debates sobre combate ao racismo entram nesse processo de formação?
Além disso, precisamos lembrar de um dado muito importante: a maioria do setor evangélico, principalmente pentecostal e neopentecostal, é feminina e negra. São mulheres negras periféricas excluídas que quando começam a estudar textos – que até então elas só ouviram nas suas igrejas como leituras para pavimentar opressões – os enxerga como libertadores. É um processo pedagógico de desconstrução, reconstrução e novos respiros. Eu faço o que for preciso para alcançar minha irmã, porque um dia eu fui alcançada. A grande diferença na EIG é que não vamos ser criticadas por sermos mulheres de fé porque agora utilizamos isso como instrumental de luta para uma fé resgatadora do amor de Deus, que não faz exceção.
Como a identidade evangélica se transporta para a política?
Infelizmente a bancada da bíblia está se utilizando dos textos sagrados para reprimir os direitos fundamentais à nossa dignidade, garantidos na Constituição. Em primeiro lugar, é uma escolha política amparada em projetos de poder. Eles querem apregoar para a sociedade e a grande mídia que são representantes de todos os evangélicos. Não são, nós somos plurais. E não digo nós mulheres EIG, apenas. Há muitas evangélicas e evangélicos progressistas em outras frentes e a esquerda não pode nos igualar ao Silas Malafaia ou ao Marco Feliciano porque estamos no mesmo lado – o lado da vida.
Ao mesmo tempo, nós sabemos que o setor evangélico foi um dos setores mais cooptados pelo fundamentalismo. Eu não nego esse dado, mas acho que precisamos complexificar um pouco mais a situação. Primeiro, temos que lembrar que a maioria dos evangélicos são pessoas empobrecidas, portanto, classe trabalhadora. Classe trabalhadora de maioria negra que, desde que nasce, é “educada” para entrar no sistema e reproduzir os pensamentos estimulados pelo capitalismo, com pouquíssimo tempo disponível para se politizar. Então essa análise precisa ser feita de maneira muito cuidadosa para não culpabilizarmos novamente a classe trabalhadora pelo que fazem conosco. Não somos burros ou massa de manobra, como muitos progressistas dizem. Apenas não temos acesso.
O Lula é o atual presidente, mas tivemos seis anos de governos conservadores, que não apoiavam as pautas sociais. O Brasil ainda não se livrou do conservadorismo e, na verdade, se mostra uma tendência crescente de pensamento. Quais caminhos vocês enxergam para escapar disso, ou para agir apesar disso?
Paulo Freire é fundamental para essa pergunta quando ele nos diz: esperança é verbo. O “esperançar” é, além de esperar por algo, refletir e planejar. Precisamos estar, mais do que nunca, unidas e organizadas. A democracia precisa ser aprofundada diariamente, na defesa de direitos sociais, inclusive, no enfrentamento a qualquer tipo de violência contra as mulheres. E isso não apenas de forma punitivista, mas pedagógica, para que consigamos chegar no cerne da questão econômica, de gênero e raça. Apesar dessa capilarização do discurso conservador na política, precisamos estar onde sempre estivemos: na luta social e no enfrentamento pela vida. Não é porque fomos contempladas com o executivo que teremos problemas estruturais resolvidos. A luta é popular e não teremos transformação na sociedade se não vencermos o racismo e a generificação da população LGBT, porque eles são braços de exploração da política neoliberal, dentro do qual a vida do trabalhador não vale nada.
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
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