Quem são e o que querem as lideranças femininas dos movimentos de entregadores por app
Em grupos de mulheres, entregadoras encontram sensação de pertencimento e lutam por direitos específicos
Bárbara Diamante *
13 min

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Foto de topo: a entregadora Jéssica Magalhães, criadora do Minas no Trecho . “Deixou de ser apenas um grupo online e passou a ser um coletivo de motogirls”. (Imagem: acervo pessoal)
Jéssica Magalhães trabalhava com entregas há cerca de 2 anos quando entrou em um grupo online de entregadores (homens e mulheres) por aplicativo. A ideia era se informar sobre a situação do trânsito ao longo do dia e tirar dúvidas sobre manutenção do veículo. Mas acabou se decepcionando. Com o tempo, percebeu que os motoboys tratavam as mulheres com indiferença.
Quando os homens mandavam mensagem, as respostas eram enviadas rapidamente. Já as mulheres, ao manifestar qualquer tipo de dúvida, até sobre coisas simples — como realizar a calibragem de pneus ou como calcular uma boa corrida — ficavam sem retorno. Também não eram escutadas ao opinar sobre a mobilização da categoria por melhores condições de trabalho.
Antes de começar a realizar entregas, Jéssica trabalhava como cozinheira em Salvador. Em 2020, devido a pandemia de covid-19 e ao lockdown, teve que se afastar e retornar à sua terra natal, Belo Horizonte. Longe das cozinhas, enxergou nos aplicativos de entrega uma oportunidade de se sustentar.
Naquele ano, ao menos 3 milhões de pessoas ficaram desempregadas. Muitas recorreram às entregas por aplicativo, que passaram a ser consideradas serviços essenciais. Somente no Brasil, os downloads do aplicativo Rappi aumentaram 24% durante esse período. Ainda que a demanda tenha crescido de forma expressiva, mais da metade (59%) dos entregadores que já estava no ramo a mais tempo relatou que a remuneração diminuiu em comparação aos anos anteriores. Para manter os mesmos rendimentos, passaram a trabalhar por mais horas diariamente.
Em julho de 2020, trabalhadores e trabalhadoras de apps se reuniram no que é considerado um marco na luta por direitos de entregadores. O primeiro “Breque dos Apps” ocorreu em vários estados do Brasil e buscava reconhecer os direitos daqueles que lidam com o trabalho plataformizado. Dentre as exigências, destacavam-se o aumento do valor mínimo por entrega e por quilômetro rodado.
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“Em 2022, ajudei na organização do Breque dos Apps. Algumas mulheres participaram, tanto presencialmente, quanto nos grupos mistos online, mas os motoboys ignoravam nossas demandas”, relembra Jéssica. Havia resistência, “uma questão de ego masculino” em relação à participação feminina, ela opina. Principalmente nos momentos em que as mulheres assumiam a frente das ações de mobilização. Foi a partir daquele momento que ela percebeu que deveria criar um grupo apenas com mulheres. Assim, surgiu o Minas no Trecho.
Como Jéssica, outras entregadoras pelo Brasil vem se politizando, e criando grupos que discutem demandas específicas da parcela feminina da categoria. Entre as principais exigências, estão a instalação de pontos de apoio voltados somente às mulheres e maior atenção à saúde íntima. Nos grupos, as entregadoras também encontram acolhida, e a chance de se fortalecer em categoria.
Quem são as mulheres entregadoras?
De acordo o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em 2024 98% dos entregadores por aplicativo eram homens. Na prática, a cada 50 pessoas que trabalham com entrega, apenas 1 é do sexo feminino.
O levantamento de dados do perfil sociodemográfico de mulheres entregadoras ao redor do Brasil ainda é cheio de lacunas. Kethury Magalhães, cientista social, se infiltrou em diversos grupos online, criados e mantidos por mulheres, para pesquisar o cotidiano das entregadoras no Distrito Federal. “É um recorte bem específico, porque é um lugar muito singular, mas têm coisas que condizem com os dados gerais. 70% delas são negras e é possível identificar isso no país inteiro”. Concluiu com seu trabalho que, de modo geral, as entregadoras são jovens adultas, negras e periféricas. Muitas são mães ou a pessoa responsável pelos cuidados de alguém. Também há uma parcela significativa de mulheres que se identifica como lésbica.

Kethury começou a acompanhar as conversas diárias de entregadoras no começo de 2023. Inicialmente, a ideia não era falar sobre a precarização do trabalho. Os grupos funcionavam como uma espécie de canal para que fizessem amizades, já que era tão difícil encontrar outras mulheres no dia a dia da profissão. Nos avisos de alguns dos grupos havia, até mesmo, um destaque com os dizeres “é proibido discutir política”. Vira e mexe surgiam diálogos sobre questões de saúde.
Com o tempo, no entanto, a pesquisadora percebeu que esse comportamento mudou. “Embora quisessem se esquivar de questões políticas, era algo inerente. De um tempo para cá, elas estão ficando ainda mais envolvidas. Há um interesse genuíno em participar das assembleias e, inclusive, compor as mesas de debates”, diz Kethury. Apesar do engajamento, “o maior desafio é que elas tenham espaço dentro da categoria, para defender as próprias demandas”, explica.
“Falta um olhar das plataformas para a gente”
A principal crítica das entregadoras é o fato de os pontos de apoio serem ocupados majoritariamente por homens. Pontos de apoio são espaços onde pessoas que fazem entregas podem descansar e realizar atividades básicas, como se alimentar e ter acesso a sanitários.
Não há números gerais, visto que cada plataforma é responsável por criar e manter o seu. Mas há indícios de que eles são poucos: o Ifood, por exemplo, contar ter cerca de 760 pontos de apoio, distribuídos entre 14 cidades brasileiras, destinados aos 385,7 mil entregadores de plataformas. Para cada ponto de apoio, são mais de 500 entregadores.
Além de escassos, principalmente fora das regiões centrais, eles não são projetados para as mulheres. Muitas consideram esses locais desconfortáveis e inseguros e optam por não frequentá-los.
“Algumas entregadoras relatam já ter visto homens usando o sanitário de porta aberta, ou usando substâncias ilícitas. Por isso, elas evitam os pontos de apoio, não por uma questão de moralismo, mas porque não os conhecem e não sabem o que pode acontecer”, explica Kethury. Embora os coletivos cobrem a criação de novos pontos de apoio, a falta de espaço de escuta para mulheres na categoria faz com que a adaptação deles às suas necessidades não seja prioridade.
Para Jéssica, a falta de pontos de apoio ou outros estabelecimentos que sejam seguros tornam as idas ao banheiro um problema. “A gente deixa de beber água para dar menos vontade de ir, mas com o tempo isso reflete no corpo”. Deixar de ir ao banheiro pode provocar infecções urinárias e desencadear outros quadros como cistite, um tipo de inflamação da bexiga.
Durante o período menstrual é ainda mais complicado. “Às vezes colocamos um absorvente interno e um comum. Na hora que o interno encher é mais fácil de tirar e jogar fora. E ainda tem o que está na calcinha. Assim, ganhamos mais tempo”, comenta. Passar mais de 3 ou 4 horas com o mesmo absorvente também pode aumentar os riscos de infecções, além de irritar a pele.
A saúde íntima é pouco discutida fora dos grupos femininos. Em uma reunião com o vice-presidente de uma das plataformas, Mirian Araújo, fundadora da Associação de motogirls e entregadoras da Paraíba (AMEN), abordou essa questão. O assunto causou surpresa. “Ficou todo mundo se perguntando ‘e isso é um problema?’”, conta.

Mirian fundou a Associação de motogirls e entregadoras da Paraíba com o objetivo de oferecer apoio, acesso jurídico e campanhas de autocuidado para as entregadoras. (Imagem: acervo pessoal)
“Os homens são mais agressivos para o lado das mulheres”
No chamado “terceiro turno”, que se estende madrugada afora, mulheres são alvos mais fáceis de assaltos e assédios. Em uma noite de 2024, Mirian havia concluído as entregas do dia quando, já na porta de casa, foi surpreendida por dois homens que a assaltaram. Até hoje está sem a moto – seu principal instrumento de trabalho. A empresa dona do aplicativo para o qual faz entregas não ajudou a arcar com os prejuízos, e ela teve que recorrer a uma vaquinha online.
O financiamento coletivo não foi suficiente para repor a moto roubada. “Depois que o delivery cresceu, o valor (de compra de uma moto) aumentou muito. Tem moto que custa o preço de um carro”. A solução que encontrou para continuar trabalhando foi revezar turnos com a namorada, que também é entregadora. De dia, enquanto a companheira frequenta a universidade, ela utiliza o veículo para realizar algumas entregas. De tarde, a companheira utiliza a mesma moto para trabalhar.
Depois do incidente, optaram por não rodar depois das 21h, porém os ganhos diminuíram bastante, o que dificulta ainda mais o desejo de Mirian de adquirir uma nova moto.
O assédio também é algo frequente: “já aconteceu de trabalharmos de legging e os clientes soltarem alguma piadinha”, conta Mirian. Para se sentirem mais seguras, é comum que as mulheres entregadoras deixem de performar feminilidade. “As mulheres estão se ‘vestindo de homem’ para ter segurança. Seja para evitar assédio ou assalto”.
Ainda assim, é perceptível que o comportamento masculino muda ao perceberem que quem está pilotando é uma mulher. É comum que homens só recuem com a presença de outro homem. “Já aconteceu comigo e com a minha companheira de um homem vir para cima da gente no trânsito. Ao ver motoboys se aproximando, ele entrou no carro e foi embora”, relembra.
A preocupação em chegar cedo em casa não se restringe à segurança, mas também diz respeito à sobrecarga enfrentada por essas mulheres que, além de trabalharem por horas a fio, têm de lidar com outros tipos de trabalho, como o doméstico.
“Quem trabalha com entrega, geralmente é a chefe de família, cuida de todo mundo e se cuida por último”
Bianca Arnaud, assistente social, explica que, historicamente, mulheres são associadas ao trabalho reprodutivo. Essa ideia, socialmente construída, é prevalente ainda hoje: as tarefas que geram renda costumam ser atribuídas aos homens, enquanto atividades de cuidado e não remuneradas geralmente são destinadas às mulheres.
Ainda que hoje em dia mulheres correspondam à parcela importante da população economicamente ativa (elas eram 43% da população ocupada no primeiro trimestre de 2025), as tarefas domésticas continuam recaindo sobre elas. Segundo o IBGE, por conta do trabalho doméstico, a cada semana as mulheres trabalham quase 10 horas a mais que os homens.
Aline Rayssa, diretora da Associação de Trabalhadores de Aplicativos por Moto e Bike (ATAMB), diz perceber isso no dia a dia. “Eu passo 12 horas fora de casa. Chegar, arrumar a casa e fazer comida, é algo que tem que ser muito bem planejado. É uma preocupação que meus colegas não têm. Eles podem passar o tempo que for fora e, quando voltam, a casa está arrumada e a comida pronta”.

Aline durante audiência pública na câmara dos vereadores de Natal/RN. (Imagem: acervo pessoal)
Aline frequentemente pensa em retornar ao mercado de trabalho tradicional, mas têm receio. “Eu tenho 32 anos. Sou formada em contabilidade. Me formei na pandemia, mas não consegui fazer estágio. Para eu começar a trabalhar hoje, teria que ‘começar de baixo’. Meu custo de vida está no meu padrão como entregadora. Não é alto, mas em comparação ao salário mínimo, é maior”.
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“A galera está engajada: opina, critica, bate de frente”
Como se isso não bastasse, a maneira como o trabalho de entregas é organizado também força as profissionais a longas jornadas. A assistente social Bianca Arnaud percebeu, em pesquisas de campo, que há um discurso – promovido pelas plataformas – de que neste modelo há maior liberdade para trabalhar e que os entregadores são os próprios patrões. É um discurso que, por vezes, os trabalhadores acabam replicando. “Na realidade é contraditório. A entregadora diz que trabalha no dia e na hora que quer, mas a carga horária chega a 12 horas por dia, de 6 a 7 dias semanais”, explica.
Aos poucos, as mulheres que fazem entregas têm se conscientizado mais sobre essas questões. A jornada de Aline no ativismo começou durante o Breque dos Apps, em 2023. Foi convidada por membros da Associação de Trabalhadores de Aplicativos por Moto e Bike da Região Metropolitana de Natal/RN (ATAMB) para integrar a diretoria, que procurava uma mulher que pudesse dar voz ao movimento. De início, foi resistente à ideia. “Antes eu trabalhava em empresa privada, tinha a ideia de que Sindicato e Associações não funcionavam. Eu pensei ‘isso vai dar certo?’”. Em respeito ao presidente da Associação, um homem que faz entregas há muito tempo e alguém a quem admira, aceitou o convite.
Com o tempo, e tendo maior contato com os movimentos, começou a se questionar cada vez mais as condições trabalhistas. “Você começa a pensar: ‘a gente precisa passar por isso? Ficar sentado em cima de papelão, comendo marmita, sem poder beber água direito, tendo que usar banheiro de posto’”.
O que as mulheres entregadoras querem?
A instalação de pontos de apoio específicos para mulheres é um consenso entre as entregadoras. Para elas, a criação deles permitiria que, além de terem um espaço adequado para descansar sem preocupações com a integridade física, as idas ao banheiro fossem tranquilas e mais frequentes.
Enquanto as plataformas não os providenciam, as entregadoras criam estratégias próprias para encontrar locais. Jéssica, que apresentamos no começo desse texto, está produzindo um “Mapa das Minas” que tem o objetivo de localizar banheiros públicos que sejam limpos e seguros, para que as mulheres entregadoras de aplicativo possam utilizar sem grandes dificuldades. “A ideia é que o mapa dê certo e seja replicado ao redor do Brasil”, comenta.
A regulamentação também é bastante debatida entre elas. “A mulherada tá mais consciente e buscando uma melhoria de fato. Não é só colocar um aumento de piso salarial, é buscar mais condições para não morrer trabalhando”. Ao pensar em futuro, para ela, regular o serviço é a prioridade: “a categoria como um todo precisa se unir mais para buscar trazer mais benefícios para quem vem depois de nós”.
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