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Sem água, quilombolas recuperam nascentes degradadas pelo agronegócio

No norte do Espírito Santo, grupo replanta árvores nativas em áreas desmatadas para cultivo de eucalipto. Objetivo é garantir acesso à água e preservar a cultura local

Rafael Ciscati

8 min

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Flávia Santos mora às margens de um rio. A uma distância de 500 metros, ou o tempo de uma corrida rápida que, na infância, ela empreendia em poucos minutos antes de mergulhar. Mesmo assim, ao menos duas vezes por semana, ela se vê obrigada a, munida de galões de plástico, percorrer 5km em busca de água para beber ou cozinhar. Nos dias bons, o caminho é feito numa caminhonete. Nos dias ruins, a água vem de charrete, puxada por cavalos.

Aos 32 anos, Flávia nasceu e se criou na comunidade Angelim II, às margens do rio de mesmo nome. A comunidade quilombola fica no norte do Espírito Santo, quase divisa com a Bahia, numa região conhecida como Sapê do Norte. Vista do alto, em imagens de satélite, Angelim II lembra um quadrilátero assimétrico, espremido entre o rio e vastos campos de eucalipto. Por lá, o lençol freático que um dia alimentou poços e nascentes, secou. O abastecimento municipal de água é feito quinzenalmente, por um caminhão pipa, e o rio mais próximo — apenas alguns passos distante da casa de Flávia — foi poluído pelos agrotóxicos usados no cultivo da cana-de-açúcar pelos fazendeiros da região. “Estamos ilhados pelo eucalipto. Sem terra para cultivar nem água para beber”, afirma.

Em novembro do ano passado, num desses dias em que faltava água e Flávia teria de percorrer 5km até a nascente mais próxima, ela se pôs a pensar. “Queria encontrar um jeito de reverter esse quadro. Uma forma de recuperar as nascentes e lagos que um dia existiram no entorno da comunidade”. Hoje, a administradora de empresas lidera um projeto que busca replantar, nas bordas de antigas nascentes, as árvores nativas que foram substituídas pelo eucalipto. O objetivo é dar a elas a chance de voltar a verter água. O esforço envolve o trabalho de toda a Angelim II e de comunidades próximas. Além de garantir o abastecimento de água, o projeto de Flávia pretende resgatar as memórias e os modos de vida de uma população que teme desaparecer, engolida pelo agronegócio.

 

Projeto quilombola liderado por Flávia Santos, reúne toda a comunidade para recuperar nascentes degradadas
Liderado por Flávia Santos, projeto reúne toda a comunidade para recuperar nascentes degradadas (Foto: arquivo pessoal)

As comunidades quilombolas do Sapê do Norte foram , um dia, bastante numerosas. Chegaram a abrigar 12 mil famílias em um território de mais de 17 mil hectares nas cercanias do município de Conceição da Barra. O cenário mudou com a chegada da monocultura de eucalipto em meados do século XX. “Aos poucos, a empresa donas das plantações foi se apropriando das terras num processo de grilagem”, conta Josi Santos, advogada da Comissão Quilombola do Sapê do Norte.

Na memória dos mais velhos, o processo foi violento. “Minha avó contava que, um dia, acordou com o barulho de máquinas destruindo as matas”, diz Flávia. Assustada, a senhora teria fugido com os filhos a tira-colo, para se refugiar na floresta.

 

Antes caudaloso, o rio Angelim perdeu volume com a mudança no regime de chuvas (Foto: arquivo pessoal)

À medida que o eucalipto avançava, as comunidades quilombolas minguavam. Dados do projeto Mapa de Conflitos — Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, desenvolvido pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz, indicam que, desde os anos 1960, 90% das famílias quilombolas que viviam na região migraram.

Sem terras para cultivar, foi esse também o destino da maior parte da família de Flávia. Quem resistiu foi, justamente, sua avó, dona Luzia. “Minha avó criou 16 filhos — oito biológicos e oito adotados — sozinha em um alqueire de terra”, conta Flávia. Um alqueire é o equivalente a, mais ou menos, dois campos de futebol. Os filhos de Luzia se estabeleceram em casas no entorno da dela. O mesmo fizeram alguns dos netos. “Hoje, vivemos nesse mesmo único alqueire. É insuficiente para plantar e criar animais”.

Nas memória da neta, Luzia era uma senhora baixinha, doce e severa. “Era uma quilombola linda”, diz Flávia, abrindo um sorriso largo. Temendo as consequências do avanço do eucalipto, Luzia passou a atuar no movimento quilombola. “Conforme a família crescia, ela percebia que o nosso território, que fora reduzido, logo não seria suficiente para garantir a sobrevivência de todos”. Dona Luzia, uma mulher simples e sem estudo, passou a lutar para que seus territórios fossem titulados. Aos 15 anos, Flávia passou a acompanhá-la nessa movimentações.

Hoje, 16 das 32 comunidades  no Sapê do Norte contam com registro de remanescentes de quilombo na Fundação Palmares. Esse reconhecimento é o primeiro passo de um longo processo que, idealmente, culmina na titulação dos territórios pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No início nos anos 2000, explica a advogada Josi Santos, a entidade emitiu documentos como o Laudo Antropológico e o levantamento fundiário referentes a essas 16 comunidades. “Mas, desde então, os processos estão parados”, afirma.

Hoje, o Incra reconhece 17 mil hectares como terras tradicionais dessas populações. Nos cálculos da Associação Quilombola de Sapê do Norte, 80% dessa área está ocupada por plantações de eucalipto.

A atividade, hoje, é conduzida pela empresa Suzano Papel e Celulose, que adquiriu as plantações de uma companhia que já ocupava os terrenos. Frente a morosidade do processo de titulação, os quilombolas do Sapê do Norte ensaiam, desde 2020, tentativas de negociação com a empresa. “Queremos que a Suzano faça um recuo das plantações de eucalipto, de modo que as comunidades tenham espaço para cultivar alimentos”, afirma Josi. Foi criada uma mesa de negociações, com a presença do Ministério Público do Estado. Mas, segundo Josi, as conversas foram interrompidas pela Suzano.

 

Procurada, a companhia não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem

O avanço da monocultura do eucalipto fez mais do que reduzir  a área destinada a cultivos de subsistência. Espécie exótica, a planta é conhecida pelo crescimento rápido e por consumir muita água. “As mudas foram plantadas muito perto de lagos e nascentes. E eles secaram”, conta Flávia. A destruição da mata nativa ao longo dos últimos 50 anos mudou o regime de chuvas na região. O rio Angelim, antes caudaloso, hoje tem margens estreitas. “Você vê areia no chão”.

As árvores também substituíram as espécies nativas do Sapê do Norte. E tomaram o lugar dos dendezeiros, cujo fruto os quilombolas transformavam em óleo para fritar quitutes. “Minha infância foi toda assim”, lembra Flávia. “Depois da escola, a gente tomava banho de rio e fritava piabas embaixo dos pés de jaca”.

Outra prática comum era o artesanato com cipó. Usando a fibra da planta, as mulheres de Sapê do Norte confeccionavam cestas e adornos, vendidos nas cidades ou usados no dia-a-dia. “Mas cipó a gente só encontra em brejos e áreas alagadiças”, diz Flávia. Com a chegada dos eucaliptos, os brejos secaram.

Em novembro, quando organizou o primeiro mutirão para recuperar uma nascente, Flávia diz que queria reavivar parte dessa memória. Decidida a tirar o plano do papel, ela convocou uma reunião com a comunidade. “Apresentamos o projeto e conversamos sobre preservação ambiental”, diz ela. O plano recebeu financiamento da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese), uma organização  que apoia projetos de defesa de direitos. Foram R$7 mil usados para comprar insumos e cultivar mudas de plantas frutíferas nos viveiro da própria comunidade.

 

Liderança quilombola do Sapê do Norte, Dona Luzia
Liderança quilombola do Sapê do Norte, Dona Luzia reivindicava a titulação de seus territórios (Foto: arquivo pessoal)

Na manhã do primeiro mutirão, o trabalho começou antes das sete da manhã. O grupo de pouco mais de 20 pessoas rumou, animado, para uma lagoa há muito seca, nas imediações da casa de Flávia. O lugar figurava nas histórias da avó. “Ela falava com carinho dessa lagoa, onde lavava roupa e onde seus filhos nadavam”,diz Flávia. “Minha avó criou os filhos com os peixes dessa lagoa, que hoje está seca”.

Lá, Flávia e os colegas removeram os eucaliptos das margens e plantaram as mudas de árvores frutíferas: aroeira, urucum, banana, mandioca e dendê. A lagoa foi rebatizada em homenagem à dona Luzia, falecida aos 82 anos. O mesmo foi feito em outras três nascentes da região, que receberam os nomes de ancestrais da comunidade. Além da nascente Luzia, há a Dona Joana, Soraldo e Brandino.

Com isso, Flávia tenta preservar suas raizes. “É uma forma de manter vivas nossas memórias”, diz ela. “Eu não quero que meus filhos vivam as mesmas dificuldades que eu. Mas quero que eles saibam de onde vieram”.

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