Transmasculino, Apollo Arantes fala sobre gravidez: “um processo transfóbico”
Ativista conta as violências que viveu durante gestação da filha, Linda Leone. E fala dos prazeres que experimentou: “adorava me ver barrigudo. Me achava lindo”.
Rafael Ciscati
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foto: Apollo arantes (à esquerda) e sua companheira, Amanda Palha (arquivo pessoal)
por Apollo Arantes, em depoimento a Rafael Ciscati
“Nunca pensei que seria pai. Nunca me imaginei engravidando — eram coisas que não passavam pela minha cabeça. Até conhecer Amanda.
Primeiro, é melhor que eu me apresente: sou Apollo, tenho 33 anos, trabalho como analista de dados e sou ativista dos movimento LGBTI+ Leões do Norte e do Movimento Independente de Homens Trans e Transmasculinidades de PE – MOVIHT-PE . Me identifico como boyceta — sou transmaculino, mas não me encaixo na masculinidade hegemônica, nem tenho interesse de atingi-la. Eu e minha companheira, Amanda Palha, moramos em Olinda (PE), e nos conhecemos quando, em 2018, Amanda decidiu concorrer ao cargo de deputada federal. Amanda é travesti. É uma mulher corajosa, e das pessoas mais inteligentes que já conheci. Eu já acompanhava o trabalho dela como militante e, quando soube que ela iria se candidatar, me enchi de esperanças. Colei na campanha. Logo, começamos a sair.
Esse nosso encontro coincidiu com um momento em que eu pensava em parar o uso de testosterona. O hormônio confere ao corpo características consideradas tipicamente masculinas. Comecei a usá-lo logo no início do meu processo de transição de gênero. Com o tempo, passei a questionar essa necessidade. A gente faz uso de muitas coisas de maneira quase compulsória. Passei a me perguntar: eu uso o hormônio por que preciso, ou para assumir a aparência masculina que o mundo espera que eu tenha?
Claro que essa decisão de abandonar a testosterona tem certas implicações. Amanda também não tomava hormônios e passamos a nos preocupar com a possibilidade de uma gravidez inesperada. Eu já tinha começado e pesquisar métodos contraceptivos definitivos quando, numa tarde qualquer, embarcamos numa viagem muito doida: e se nós tivéssemos um filho? Na nossa relação, existe uma admiração mútua muito grande. Acho Amanda fantástica. Eu a admiro politicamente e como companheira. Percebemos que, mesmo se no futuro deixássemos de ser um casal, seria maravilhoso compartilhar a educação de uma criança nesse processo louco que é viver.
Decisão tomada: teríamos um filho! Mas o processo deveria seguir sem pressões, no esquema “ se rolar, rolou”. Com isso em mente, o uso de testosterona perdeu completamente o sentido para mim.
Na prática, as coisas foram bem menos tranquilas do que tínhamos planejado. Entre o momento em que decidi engravidar, até o nascimento de Linda Leone, experimentei as dificuldades e angústias esperadas para um pai de primeira viagem. Vivenciei, também , a violência de um sistema de saúde que não está preparado para acolher corpos trans. Minha gestação foi um processo traumático, violento e transfóbico.
No fim, poder ver o sorriso de minha filha fez tudo valer a pena.
Apollo amamenta a filha, Linda Leone (foto: Arquivo pessoal)
As complicações começaram ainda antes da gravidez. Demorei para engravidar. Depois de 10 meses de tentativas frustradas, levei a questão para a médica que me acompanhava no meu processo transexualizador. Contei para ela que eu tinha parado com os hormônios e queria saber como andava minha saúde reprodutiva. Minha intenção, afinal, era engravidar. “Ótimo”, ela me disse. “A gente pode marcar para você voltar aqui quarta-feira, para colocar um DIU?”.
DIU, ou Dispositivo Intrauterino, é um objeto pequeno e curvo inserido no útero como forma de evitar uma gravidez. A resposta da médica, claro, me deixou desorientado. “Será que eu não posso engravidar de saída? Será que tenho que, antes, fazer alguns exames?”, pensei com meus botões, sem entender a violência que vivenciara.
Situações semelhantes se sucederam pelos meses seguintes. Descobri que estava grávido em dezembro de 2019. Em março do ano seguinte começou a quarentena (em virtude da pandemia de covid-19). O isolamento foi difícil. Logo no começo da gestação, tive um pequeno episódio de sangramento. Passei por um atendimento de emergência, em que tudo correu bem. Tempos depois, relatei o caso para a obstetra que me acompanhava. O problema com o atendimento médico é que, muitas vezes, a medicina ignora que sou boyceta. Muitos médicos acham que o essencial é me tratar pelo pronome correto, e tão somente.
Não era o caso dessa profissional: ela nem mesmo me tratava como o pai da criança. Na relação que tínhamos com ela, eu achava que esse era o menor dos problemas. Ao saber do sangramento, minha médica concluiu que eu precisava fazer uma dosagem de progesterona (um hormônio feminino). Ela não levou em consideração o fato de que sou um boyceta. Usei testosterona por muito tempo e meu organismo poderia reagir de uma maneira diferente. Usei um comprimido intravaginal de progesterona e comecei a vomitar muito. A fraqueza era tamanha que me mantinha prostrado na cama.
Vomitava o tempo inteiro. Aqueles enjoos próprios do início da gravidez, eu senti durante os 9 meses de gestação. Relatava o problema para a médica, mas ela dizia ser normal. Não era. Meses depois, quando passei a ser acompanhado por outra profissional, descobri que aquele problema tinha nome: era um quadro de hiperêmese gravídica.
Mas a médica raramente me ouvia. Quando íamos para uma consulta, ela mal nos olhava nos olhos. Seguir com esse acompanhamento exigia preparo — eu começava a sofrer no dia anterior à consulta, já sabendo o que me esperaria no consultório.
Concluí que aquela média é o tipo de pessoa que, apesar de trabalhar em um espaço que atende pessoas trans, nos faz odiar nossos corpos. Pessoas assim partem do princípio de que a gente tem útero, mas não pode gestar. São pessoas que reforçam a ideia de que, para ser homem, você não pode engravidar. Não pode fazer uso de seu corpo.
Mudei de profissional no quinto mês de gestação. Passei a ser acompanhado por uma médica de família que se tornou minha amiga. Todo o pré-natal, é preciso dizer, foi feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Depois dessa mudança, minhas experiências melhoraram muito. Mas, por conta de tudo o que vivi enquanto gestava, não consegui curtir a gravidez. Aproveitei, sim, as mudanças no meu corpo. Adorava me olhar no espelho e me enxergar barrigudo. Eu me achava lindo.
Quando Linda Leone começou a se mexer então…Até a criança começar a se movimentar, parece que ela é uma invenção da sua cabeça. Senti-la se movendo era uma delícia. Amanda cantava, e Linda reagia, embalada pela voz.
O parto
Com isso, se aproximava a hora do parto. Eu pensava muito na questão de onde ter esse bebê. Por que, se eu já sofrera transfobia durante a gestação, imagine então durante o parto. Uma das maiores referências em parto humanizado no Recife é o Hospital da Mulher. Não sou uma mulher. Mas achei que, ali, eu teria chances de sofrer menos. O problema é que, durante a pandemia, o Hospital da Mulher se tornou um centro de referência para tratamento de covid-19, onde pacientes doentes eram internados.
Surgiu com isso o desejo de fazer um parto domiciliar. Foi um desejo que veio e se foi rapidamente — não tínhamos o dinheiro necessário para cobrir os custos desse procedimento.
Amigos e familiares nossos, por esses tempos, cobravam que a gente organizasse um chá de bebê. Não queríamos — em meio à pandemia, todo mundo com problemas financeiros, entendíamos que não era o caso. Mas tivemos uma ideia alternativa: em lugar do chá de bebê, montamos uma vaquinha online. O valor arrecadado seria usado para bancar o parto em casa. Era o que eu mais queria, por causa da segurança durante a pandemia, e por temer violência obstétrica. Deu certo: arrecadamos R$ 5 mil.
Linda, Amanda e Apollo (foto: arquivo pessoal)
Linda Leone chegou ao mundo apressada, não quis aguardar preparativos. Foi no dia 14 de agosto de 2020. Eu tinha separado aquele final de semana para lavar as fraldas ecológicas e colocar tudo em ordem. Não deu tempo. Às 6h da manhã de sexta, acordei já em trabalho de parto. Foi demorado: durou 13h. Durante esse tempo, as duas enfermeiras que me acompanhavam não saíram de perto de mim. Foi lindo. Eu estava em casa, com minha companheira, e com pessoas queridas: a mãe de Amanda e as duas enfermeiras obstetras.
Linda Leone nasceu forte. Seu nome é uma dupla homenagem: Linda, como minha avó; Leone, como o pai de Amanda — que ficou exultante com a notícia de que seria avô, mas morreu antes de a neta nascer, vítima de covid-19.
Hoje, nossa grande questão é: como ensinar uma criança com vagina que ela pode ser autônoma, que ela tem voz? Sabemos que o mundo vai querer silenciá-la. Vai querer forçá-la a acreditar que suas possibilidades são limitadas só porque ela não tem um pênis.
Já vivenciamos problemas. Aos 15 dias de vida, Linda teve uma assadura grave, e precisamos levá-la ao médico. Na consulta, eu não fui tratado como pai, Amanda não foi tratada como mãe. Mas isso foi o de menos. A médica prescreveu uma batelada de exames para Linda. Inclusive o de HIV. “É de praxe”, disse. Não é. Um exame desse tipo não faz sentido para uma criança recém-nascida que passou por acompanhamento pré-natal. Naquele momento, sentimos, pela primeira vez, o peso que Linda carregaria. No fim das contas, ela tem uma mãe travesti e um pai boyceta. Isso vai repercutir na vida dela para sempre.
Tememos as violências que ela pode sofrer. O tempo todo, me pergunto se ela corre o risco de apanhar, simplesmente por ser nossa filha. Chegamos ao limite de pensar que, no Brasil, não vamos conseguir educá-la em segurança.
Apesar disso, Linda cresce feliz. Feliz e faminta! Hoje, adoro ser pai. Dá um trabalho do cão. Mas é muito gostoso”
NOTA: optamos por pixelar a foto em que Apollo amamenta Linda. O objetivo, com isso, não é esconder os seios de uma pessoa que amamenta (e que deve ter liberdade para alimentar a filha nos espaços que desejar). Nossa intenção foi preservar a imagem de pai e filha, uma vez que fotos online correm o risco de ser reproduzidas e editadas por pessoas mal intencionadas.
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