Um ano marcado por retrocessos
Segundo Wagner Moreira, do coletivo Ideas, a criminalização dos movimentos sociais que ocorre no Brasil hoje reaviva um espectro histórico de autoritarismo
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Por Wagner Moreira, do Coletivo Ideas
No tocante às pautas dos direitos humanos, 2019 vem se provando uma ano de muitas dificuldades na esfera institucional e na disputa do imaginário social. Trata-se de um ano marcado por retrocessos. Por outro lado, é também um ano que exige muita mobilização e incidência para uma estratégia de articulação defensiva, capaz de mobilizar organizações e movimentos para acompanhar de perto e reduzir o alcance dos estragos produzidos pelo governo Bolsonaro. Essa necessidade de mobilização poderá levar a uma maior unidade e amadurecimento para as organizações e movimentos que compõe o campo dos direitos humanos no Brasil.
Estamos tratando de retrocessos que fizeram recuar, já na primeira semana do governo Bolsonaro, as mínimas garantias dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais, como a demarcação e regularização territorial de indígenas e quilombolas. Um descalabro sem limites*. Retrocessos que deram continuidade ao ataque ao direito coletivo dos trabalhadores iniciado com a reforma trabalhista ainda no governo Temer e continuado com a extinção do Ministério do Trabalho.
É necessário enfatizar que não estamos tratando de meras mudanças administrativas. Estamos tratando aqui de retrocessos no acúmulo democrático no tocante à participação cidadã no âmbito da proposição da política pública, em que havia desenhado um formato de participação para a sociedade civil, ainda que frágil do ponto de vista da efetivação.
Indo além, podemos afirmar que estão sendo efetivados retrocessos não só na escala da operacionalização das políticas públicas que visam assegurar os direitos humanos. Há também retrocessos na forma de reivindicá-las: a criminalização dos ativismos, protestos, manifestações e movimentos sociais reaviva um espectro histórico de autoritarismo, que não foi devidamente tratado nas curtas décadas de redemocratização.
Se iniciativas de criminalizar os movimentos sociais como a Sugestão Legislativa nº 2 de 2018 (que buscava “criminalizar o MST, MTST e outros movimentos ditos sociais que invadem propriedades”) vingassem, não poderíamos dialogar com a Ação Direta como método de tensionamento democrático em prol da efetivação de direitos. Nesta hipótese, o Movimento dos Trabalhadores Rurais – MST não teria incidido para a efetivação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF. E o Movimento pela Reforma Urbana não teria incidido na Promulgação do Estatuto das Cidades, entre diversos outros possíveis exemplos.
Se a sociedade civil organizada no terceiro setor não tivesse liberdade para atuar criticamente, como previa a Medida Provisória nº 870 de 2019, que traz para o âmbito da Secretaria de Governo da Presidência o monitoramento de organismos internacionais e organizações não governamentais (ONGs), dificilmente o Brasil seria uma referência internacional no tratamento a AIDS enquanto direito universal e gratuito por meio do Sistema único de Saúde (SUS). Resultado da luta de Betinho e muitos outros que constituíram a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), que incidiu diretamente para a efetivação deste direito.
O IDEAS – Assessoria Popular, a organização que eu coordeno, concentra parte significativa da sua atuação na interseção das violações de direitos causadas pela lógica do modelo de desenvolvimento urbano e a justiça criminal. Nesta esfera de atuação, onde estão combinados o não reconhecimento de direitos, as violações de direitos e o monitoramento e a restrição da atuação da sociedade civil organizada, vislumbramos uma projeção minimamente assustadora para as pautas dos direitos humanos nos próximos meses de 2019.
A inexistência do exercício de alteridade que faz com que o outro seja não um portador de direitos, mas um empecilho ao desenvolvimento (no caso dos povos e comunidades tradicionais); ou a resolução de impasses sociais por meio da necropolítica que vai sendo exercitada desde quando se defende “entupir a cadeia de bandidos”[1], ou avalizando o abatimento de sujeitos em abordagens policiais, como defendido recentemente pelos governadores do Rio de Janeiro[2] e de São Paulo[3]; permitem vislumbrar o tamanho do desafio.
Na pauta da Justiça Criminal, vai existir tanto a dificuldade de afirmar pautas históricas, a exemplo do Indulto e da Prevenção e Combate à Tortura, como aconteceu respectivamente na escala federal e no Estado de São Paulo; como a dificuldade de disputar o imaginário social, a exemplo do discurso de que “bandido bom é bandido morto”, que associado à sensação de insegurança levou a população a exaltar a posse de arma de fogo como uma resposta à ineficácia da política de segurança pública.
O que nos permite vislumbrar (quando se soma a ausência de alteridade, com uma população armada) o aumento significativo nas ocorrências de justiçamento popular, violência policial (inclusive pela liberação da posse de armas para quem atua no exercício de atividades de poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente), bem como um crescimento ainda maior nos assassinatos de LGBTs e no feminicídio.
No legislativo federal seguiremos assistindo diversas iniciativas que apostam no recrudescimento da pena como um discurso que visa minorar a criminalidade, mas que não funciona e só piora a situação do superencarceramento. Vide os diversos projetos de lei que seguem na perspectiva do endurecimento de pena, mesmo em crimes como o tráfico de drogas, que já é considerado crime “equiparado” a hediondo. Existe movimentação no sentido de enquadrá-lo como terrorismo.
Há ainda outros projetos em tramitação no Senado, que nesta conjuntura devem ter tramitação facilitada, como: o PLS 580/2015, que obriga o preso a ressarcir o Estado das despesas com sua manutenção; O PLS 148/2015, que modifica a progressão de regime aos condenados reincidentes; o PLS 207/2017, que estabelece como falta grave por parte do condenado a inobservância do perímetro de inclusão determinado pela monitoração eletrônica; e o PLS 490/2018, que restringe as visitas de crianças e adolescentes a condenados por crimes hediondos.
Cada vez mais se percebem ações que incidem para ampliação do Estado de Exceção, restringindo direitos e instrumento de controle e fiscalização caminhando para um cenário cada vez maior de autoritarismo. Não à toa, o Brasil foi incluído na lista de países governados por líderes autocráticos segundo o Relatório Mundial de Direitos Humanos 2019, divulgado pelo Observatório de Direitos Humanos (HRW).
Esse quadro, combinado com o aumento da extrema pobreza, que saltou de 4% para 5,5% da população brasileira entre 2015 e 2017,[4] aliado à flexibilização da legislação trabalhista e aos ataques que estão sofrendo as políticas públicas complementares de proteção social, como a reforma da Previdência, bem como a discrepância e a agudização da concentração de renda, fará com que o cenário deste ano exija do campo em prol dos direitos humanos muita articulação para (i) furar o isolamento institucional e midiático; (ii) ter capacidade de monitorar e incidir junto a uma enxurrada de projetos de lei que tendem a reduzir direitos, criminalizar, e contribuir para o aumento do tempo de pena; (iii) além de conseguir emplacar em diversas escalas diálogos sobre política pública de segurança, que não sejam blindados pelo tecnicismo e ao mesmo tempo consigam superar argumentos tão rasos como o utilizado pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que comparou o risco a uma criança de ter arma em casa, com o risco de se machucar com um liquidificador.
Para dar conta destes desafios, o IDEAS – Assessoria Popular tem apostado na construção da Agenda Nacional pelo Desencarceramento e Desmilitarização e na aproximação com a Rede Brasileira de Justiça Criminal. Espaços de articulação de caráter nacional que têm cumprido importante papel na dinâmica de proposição, diálogo, denúncia e fiscalização no campo da Justiça Criminal.
*Wagner Moreira é Coodenador do IDEAS – Assessoria Popular, articulador da Agenda Nacional pelo Desencarceramento e da Frente de Resistência Urbana Latinoamerica. Mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFBA, pesquisador do Grupo Lugar Comum.
*NOTA: No começo do governo Bolsonaro, uma alteração na estrutura dos ministérios definiu que caberia ao ministério da Agricultura demarcar terras indígenas e territórios coupados por populações tradicionais. Em junho, o Congresso derrubou a mudança, devolvendo ao ministério da justiça a responsabilidade pelas demarcações. Ainda em junho, Bolsonaro editou nova medida provisória, revertendo a decisão do Congresso. Por fim, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, definiu que o trecho da nova MP que devolvia as demarcações para o ministério da Agricultura era inválido.
[1] “Vamos entupir a cadeia de bandidos. Está ruim? É só não fazer besteira. Eu prefiro a cadeia cheia de bandidos que o cemitério cheio de inocentes.” https://www.gazetaonline.com.br/noticias/politica/2018/11/discurso-de-endurecimento-penal-de-bolsonaro-esbarra-em-decisoes-do-stf-1014154760.html
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-01/witzel-volta-defender-abate-de-criminosos-no-rio-de-janeiro
[3] https://www.revistaforum.com.br/video-doria-diz-que-agora-em-sp-bandido-nao-vai-para-a-delegacia-nem-para-a-prisao-vai-para-o-cemiterio/
[4] Dados disponíveis no relatório Panorama Social 2018, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, divulgado em 15/01/2019.
FOTO: Fundo Brasil
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