Viva para dar orgulho ao seu filho, diz mãe de Ágatha à mãe de João Pedro
Rafael Ciscati
7 min
Navegue por tópicos
Vanessa Sales, em depoimento a Rafael Ciscati
“Eu estava no trabalho quando soube do desaparecimento de João Pedro*. Àquela altura, as informações eram vagas. Amigos me enviavam mensagens de WhatsApp contando que um menino fora baleado e levado de casa pela polícia. ‘Meu Deus, esse menino está morto’, pensei no mesmo instante.
A notícia fez passar um filme pela minha cabeça. Pensei na angústia vivida pela mãe de João Pedro — que, até aquele momento, não sabia nem sequer o paradeiro do filho. A dor dessa incerteza, a dor de não saber quando será possível velar um filho morto, é dilacerante. E é uma dor que eu conheço.
>> A necropolítica, Ágatha e o direito a vida
Em setembro de 2019, minha filha, Ágatha Félix, foi morta quando um policial militar disparou contra a Kombi que a transportava. Tudo aconteceu de maneira muito rápida e confusa. Ouvi Ágatha gritar, ouvi o barulho alto do tiro. Na hora, soube que o destino de minha filha não poderia ser bom. Soube que ela morreria — ou que, na melhor das hipóteses, levaria sequelas daquele tiro pelo resto da vida.
>>O que é racismo ambiental, e qual sua relação com a Covid-19
Minha filha morreu, e levamos mais de um dia para conseguir liberar o corpo para o enterro. Pode parecer estranho mas, àquela altura, eu só queria que tudo acabasse depressa. Queria poder enterrar minha filha, orar por ela. A agonia da espera se uniu à agonia da perda. No dia 18 de maio, quando soube que João Pedro tinha desaparecido, soube também que era essa uma das muitas agonias que a mãe do menino enfrentava.
>>Milícias impedem população de se isolar contra a Covid-19
Cada pessoa vive a dor da perda de um jeito. João Pedro e minha filha foram duas crianças cujas vidas foram tiradas pelo Estado. Mesmo assim, não quero igualar as experiências. Cada perda é única. O que sei é que a gente, que fica para trás, continua a ser mãe. Sofre e carrega essa dor para sempre. Se eu pudesse, diria isso à mãe de João Pedro. Diria que essa é uma dor que não passa. A ferida cicatriza, mas dói para sempre. Apesar dela, viva. É o que João Pedro gostaria que você fizesse. Viva par dar orgulho ao seu filho. Hoje, se eu estou viva, é porque quero dar orgulho à Ágatha. Faça o mesmo por ele.
Desde que minha filha morreu, minha vida é voltada para as memórias. Quem conheceu Ágatha sabe que ela era um amor de criança. Era alegre, falava olhando nos olhos. Era inteligente. Eu dizia a ela: “Ágatha, você não entende das coisas fáceis. Mas sabe tudo das coisas difíceis”. Porque ela sabia ser doce. Gostava de pensar e falar. Ágatha não tinha vaidades. No ano passado, consegui matriculá-la numa escola nova. Quem é mãe teme essas mudanças: ‘será que ela vai se adaptar?”, fiquei pensando. Mas ela era tão esperta. Fez amigos tão depressa, só tirava 10 nas provas. Eu ficava em êxtase: ‘Ágatha, você é muito inteligente’, eu dizia para ela. Mas ela não ligava. Olhava para mim meio confusa, sem entender o elogio. Ia comigo para onde quer que eu fosse. As pessoas nos achavam muito parecidas. A semelhança era somente física: acho que Ágatha era muito mais madura que eu. Ela era uma parte de mim, e continua sendo.
O primeiro dias das mães que passei sem ela foi das coisas mais doídas que já vivi. Numa data comemorativa, todo mundo fica feliz. As famílias se encontram, sorriem, brincam. Eu era a diferente. Eu, hoje, tenho que descobrir como me reencaixar no mundo. Desde que Ágatha foi morta, tento transformar a dor em força para lutar. Sei que o que aconteceu a ela não foi um acidente. Quem empunha uma arma sabe que tem, em mãos, o poder de matar. Quem dá um tiro sabe que a bala pode atingir alguém. Minha filha foi morta pela polícia, que deveria existir para protege-la, mas que fez dela um alvo.
Nos últimos meses, conheci muitas mães que passaram pelo mesmo. Mães cujas famílias são vítimas do Estado. Elas me procuram, trocamos experiências. São mães que, como eu, tentam se reencontrar no mundo. Busco, aos poucos, meu caminho como ativista pelos direitos humanos. De maneira discreta. Esse não foi um caminho que eu escolhi. Foi um caminho que o Estado me impôs quando tirou minha filha de mim.
Quem vive em favela conhece essa brutalidade. Quando se trata de polícia, tudo o que a gente vê é troca de tiros e morte. Moro no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Quando começa uma operação policial, a gente sabe o que fazer: é preciso correr. Mas, correr para onde? Ninguém sabe de onde o tiro virá. Os helicópteros sobrevoam as casas voando baixo. A gente escuta o tiroteio e se esconde. É aterrorizante.
O policial que mata faz isso com o aval do Estado. É o governo que autoriza as operações. Muitas acontecem cedo pela manhã, ou no começo da tarde: horários de entrada e saída das escolas, quando há crianças circulando nas ruas. É inadmissível. A polícia deveria agir com tática, com inteligência. No meio dessa brutalidade, morrem os inocentes.
Quando Ágatha era viva, passamos muitas noites escondidas no box do banheiro. Era o lugar mais seguro de casa. Eu estendia um edredom no chão e dormíamos lá. Na semana em que João Pedro morreu, precisei fazer o mesmo. Deitada no banheiro, pensava: ‘quando isso vai parar?’. É o que me pergunto ainda agora. Quantos mais precisam morrer?
No dia em que João Pedro morreu, começou a circular um desenho que mostrava Ágatha e ele se encontrando no céu. A imagem me deixou muito emocionada. Sou bastante religiosa. Minha fé é o que me mantém firme. Por causa dela, acredito que minha filha esteja no céu. As crianças vão direto para lá. Gosto de pensar que ela recebeu João, e que hoje os dois estão felizes. É o que peço a Deus. Ao Estado, só peço que pare de matar nossas crianças. Elas têm o direitos de viver, e de ser felizes.”
——–
*João Pedro Mattos Pinto tinha 14 anos quando foi baleado por policiais dentro da própria casa, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Brincava com os primos quando policiais invadiram a residência. Ferido, foi levado pela polícia, que disse que lhe prestaria socorro. Cerca de 17 horas depois, seu corpo foi identificado por familiares no IML do Rio. No último dia 26, um ato online marcou os sete dias de morte do adolescente, e cobrou o fim das operações policiais no estado. Nas últimas duas semanas, ao menos 17 pessoas morreram no Rio de Janeiro durante operações semelhantes, de acordo com levantamento da Rede de Observatórios da Segurança.
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisCom acordo em Alcântara, Estado se antecipa à condenação internacional, diz ativista
9 min
Pesquisa revela violências sofridas por mulheres negras na Amazônia paraense
7 min
Glossário
Ver maisAbdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min
O que é violência obstétrica? Que bom que você perguntou!
4 min