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Ao legalizar venda de maconha, Brasil pode reparar injustiças, diz advogado

Rafael Ciscati

13 min

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O Brasil tem a terceira maior população carcerária de todo o planeta: pouco mais de 900 mil pessoas presas, seguno dados do CNJ. Pelo menos um terço desse grupo foi preso por delitos relacionados à lei de drogas. Para o advogado Cristiano Maronna, regular o mercado de cannabis para uso adulto – criando regras que permitam a compra, a venda e a taxação da maconha – é um dos caminhos possíveis para reduzir essa imensa massa carcerária. A mera descriminalização do uso pessoal da maconha, diz ele, já traria benefícios para todo o sistema de Justiça. “Hoje, o Brasil investiga mal crimes violentos”, diz Maronna. “A regulação do consumo adulto de cannabis abriria espaço para o sistema de Justiça se concentrar na apuração de crimes graves”. 

>>Leia também: Em que países a maconha é legalizada? No Brasil, o consumo é crime?

Especialista em direito penal, Maronna acaba de coordenar a tradução brasileira do livro Como regular a cannabis: um guia prático. Publicada em 2013 pela organização britânica Transform Drug Policy Foundation, a obra traz recomendações que podem ser aplicadas ao desenho de poilíticas públicas. Imagina um cenário em que o consumo de maconha não apenas deixou de ser crime  – foi descriminalizado  – como se tornou uma prática legal. Tudo baseado em experiências internacionais e investigações acadêmicas. Trata de aspectos diversos: da maneira como a droga é preparada à forma como o produto deve ser embalado, comercializado e taxado. No Brasil, a tradução ficou a cargo da Plataforma Justa, que Maronna dirige. 

Hoje, a estimativa é de que o mercado de cannabis movimente cerca de US$50 bilhões por ano em todo o mundo. Sua regulação, em se tratando do uso recreativo, exige alguma cautela. Segundo os autores do Guia, é importante que as regras adotadas mitiguem prejuízos à saúde pública. E que a liberação da compra e venda de maconha traga benefícios sociais, como a redução da população carcerária: “ a reforma da política da cannabis não pode partir de uma tábula rasa: deve-se reconhecer os danos devastadores e discriminatórios [provocados pela guerra às drogas] que foram experimentados, principalmente, por comunidades negras, minorias étnicas, indígenas e aquelas que foram social e economicamente marginalizadas”, diz o texto. “A regulação precisa garantir reparação histórica e justiça social”, afirma Maronna.

>>LEIA TAMBÉM: Na política de drogas, Brasil se comporta como país colonizado 

Também é importante evitar que o processo regulatório seja sequestrado por interesses corporativos. Nesse campo, o livro ressalta que os mercados de álcool e tabaco trazem fartos exemplos de erros a evitar.  “A história dos mercados de drogas legais traz exemplos abundantes de situações em que interesses comerciais suplantaram prioridades de saúde”, escrevem os autores. “Autoridades regulatórias devem aprender com essas experiências e garantir que o comércio legal de cannabis não seja susceptível ao mesmo tipo de manipulação da indústria”.

Maronna diz que essa conversa custa a ganhar corpo no Brasil. Mas já se tornou alvo fácil de políticos conservadores. Desde 2015, O Supremo Tribunal Federal (STF) julga a constitucionalidade do artigo 28 da atual Lei de Drogas. Em debate, está o direito de uma pessoa portar drogas para consumo próprio.  A ação foi movida pela Defensoria Pública de São Paulo, depois de um homem ser preso por portar três gramas de maconha. Até agora, apenas três ministros votaram: Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Todos favoráveis à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. (Mendes estendeu a descrinalização a todas as substâncias, não somente à maconha)

O tema voltou à pauta do Supremo em 2023, mas não chegou a ser votado. Na avaliação de Maronna, a demora no debate é deliberada. “Os extremistas de direita têm dito que o Supremo invade a competência do Congresso, a quem caberia discutir a  descriminalização.  É um argumento falacioso. Cortes constitucionais têm como função típica a análise a respeito da constitucionalidade de normas jurídicas”, afirma.

Apesar disso, ele destaca que o país avança na regulação do uso medicinal da cannabis, o que pode abrir espaço para alargar a conversa. Desde 2015, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que regulamenta o cultivo da planta para fins medicinais. Hoje, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já autoriza a importação e venda de produtos a base de canabidiol, um dos princípios-ativos da maconha.  “O Brasil pode se tornar um player importante no mercado de maconha para uso adulto”, afirma. “É um tema que precisa ser debatido”.

>>LEIA TAMBÉM: Qual a diferença entre usuário e traficante?

Brasil de Direitos: A regulação do mercado de cannabis não- medicinal é um tema em discussão no Brasil?

Cristiano Maronna: Não. E essa é uma questão que está em disputa dentro do governo. Há ministros como Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Anielle Franco (Igualdade Racial), que falam da necessidade de mudar a lei de drogas, de discutir poderes regulatórios, de discutir reparação histórica e justiça social. Por outro lado, você vê o ministro Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) dizendo que não vai haver mudança, que o governo não vai priorizar esse tema. Além disso, trata-se de um governo que, devido à conjuntura, tem muita dificuldade para aprovar os projetos considerados prioritários no legislativo. E uma pauta como essa, controversa, tem muita resistência no Congresso majoritariamente conservador. Hoje, há uma extrema-direita muito fortalecida, até pelo fato de ter governado o país nos últimos quatro anos e ter uma presença forte no Congresso.  E uma das bandeiras políticas que eles têm é justamente a questão das drogas. Tanto no executivo quanto no legislativo, esse tema dificilmente vai avançar. 

O STF discute a legalização do porte de drogas.  É uma brecha?

A única experiência que a gente tem de avanço na política de drogas é no judiciário. Tramita no STF o Recurso Extraordinário 635659, que discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Nesse recurso, se discute também a diferenciação entre o porte para uso pessoal e o tráfico de drogas, e a definição de critérios objetivos, baseado no peso e natureza de cada substância, para diferenciar o usuário do traficante.  Já foram proferidos três votos. O relator, Gilmar Mendes, reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 28 sem redução de texto. Ele propõe que o artigo 28 deixe de ser uma norma penal, passa a ser uma norma administrativa. Por um lado, isso é bom, porque a posse de drogas para o uso pessoal deixa de ser crime. Por outro lado, é ruim, porque ela continua sendo ilegal, uma ilegalidade administrativa. O voto do ministro Fachin restringiu a declaração de inconstitucionalidade apenas à maconha. E propôs o mesmo que o ministro Gilmar: a transformação do  artigo 28 em norma de direito administrativo, não mais norma de direito penal. Já o voto do ministro Barroso, que eu considero o mais avançado, restringe também a declaração de inconstitucionalidade apenas à maconha. Além disso, ele propõe que, quem portar até 25 gramas de maconha in natura e até 6 flores fêmeas possa ser considerado usuário. Ele cria um desenho regulatório mínimo, que permitiria que dentro desses parâmetros  –  até 25 gramas, até 6 plantas – houvesse uma situação de legalidade, ainda que uma legalidade precária, enquanto o legislativo não se debruçar sobre o tema.

O julgamento no STF se desenrola desde 2015. Não é tempo demais?

Há uma demora deliberada na discussão desse tema. O julgamento começou em 2015, foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Teori Zavascki em novembro de 2015. Ele morreu em 2017. O ministro Toffoli, que era o presidente da corte em 2019, chegou a pautar o julgamento, mas retirou da pauta depois de uma negociação com o então presidente Bolsonaro, que entendia que esse era um tema inconveniente. Os bolsonaristas, os extremistas de direita, têm dito que  o Supremo invade a competência do Congresso ao discutir a descriminalização. Esse é um argumento falacioso, mentiroso, porque cortes constitucionais têm como função típica a análise a respeito da constitucionalidade de normas jurídicas. Portanto, o Supremo declarar inconstitucional  uma norma é algo que faz parte do seu rol de atribuições, de funções típicas. Não haveria nenhuma invasão na área do Legislativo. E há também a questão do Legislativo estar se omitindo deliberadamente a respeito desse tema, o que também torna as coisas mais difíceis.

A aceitação do uso medicinal da cannabis parece crescer no Brasil. Isso beneficia a conversa sobre como regular o uso adulto?

A experiência internacional mostra que onde o uso terapêutico da maconha foi regulado, abriu-se espaço para uma discussão mais ampla sobre o uso adulto. Há uma relação. E, sem dúvida, eu concordo com a sua avaliação. Lançamos o Guia no Congresso e, na ocasião, conversei com o deputado Sóstenes Cavalcante, um conservador. E ele disse não se opor ao uso medicinal, porque ele não é contrário à ciência. Claro, foi uma conversa reservada. É uma frase de efeito, não sei se ele se posicionaria da mesma forma publicamente. Mas o uso medicinal ganhou aceitação ampla. Acho que já dá para dizer, inclusive, que talvez haja uma maioria nesse sentido hoje no Congresso, favorável a uma regulamentação. Mas temos nuances. Qual o discurso dos proibicionistas? Primeiro, eles negavam que a maconha tivesse qualquer propriedade terapêutica. Agora que a ciência mostrou que essa propriedade terapêutica existe, e negá-la é inútil, eles tentam fazer uma diferenciação. Dizem que o CBD é remédio e que a maconha é droga. Mas também essa abordagem é equivocada, porque hoje a ciência já reconhece propriedades terapêuticas no THC, que é o princípio ativo. Provavelmente os conservadores, se toparem discutir regulação, vão querer aprovar uma regulação restrita apenas ao CBD. De todo modo, não há dúvida de que o avanço da pauta do uso terapêutico da cannabis favorece, reduz o estigma, reduz o tabu, favorece a discussão também sobre o uso adulto. Isso aconteceu nos Estados Unidos, no Canadá e em outros lugares.

Nesse cenário de contradições, por que lançar um guia falando sobre como regular a cannabis?

Avaliamos que é no início dos mandatos, no início das legislaturas, que se concentra a energia política para operar mudanças. Depois o tempo passa e as coisas vão se acomodando, os próprios parlamentares vão perdendo um pouco esse ímpeto. No Brasil, o debate sobre o uso adulto tem sido deixado de lado, até pela proeminência do debate sobre o uso terapêutico. E, na nossa avaliação, embora a discussão sobre o uso terapêutico seja muito importante, é importante também que essa discussão sobre o uso adulto seja colocada, porque esse é um movimento que está acontecendo no mundo todo. E o Brasil tem condições de se tornar um player importante nesse mercado, que é um mercado que já produz riqueza. Avalia-se que é um mercado que gira em torno de 50 bilhões de dólares por ano, com a tendência de aumento. Pensamos no guia como uma ferramenta para fomentar o debate. Porque, justamente, ele discute a regulação do uso adulto de cannabis em diferentes aspectos. Embalagem, potência, tributação, pontos de venda, direção e uso.

Um terço da população carcerária brasileira foi presa por delitos relacionados à lei de drogas. Quais podem ser os efeitos de uma regulação da cannabis para o sistema de Justiça?

Primeiro, um processo de desencarceramento em massa. Hoje o Brasil tem a terceira maior população prisional do planeta, e um terço dos presos estão lá por conta da lei de drogas. No caso das mulheres presas, são duas em cada três. Uma aprovação da regulação do uso social da cannabis teria como consequência a colocação de pessoas que hoje estão presas por tráfico de maconha em liberdade. É o que a gente chama de abolicionismo criminal. Quando uma lei que deixa de considerar a crime uma conduta anteriormente considerada crime. Além disso, o fato de o sistema de justiça criminal deixar de tratar de questões relacionadas à maconha abriria espaço para o sistema de justiça enfrentar aquilo que realmente importa, que são os crimes graves, os crimes violentos, como por exemplo o homicídio, que é um crime muito grave e que praticamente não é punido no Brasil. Nós temos cerca de 50 mil mortes violentas por ano no Brasil, e uma qualidade de investigação muito baixa. Abrir espaço na agenda do sistema de justiça, ao deixar de cuidar de casos envolvendo maconha, abriria espaço para que outros crimes fossem melhor investigados, fossem priorizados.

Há exemplos de países que colheram esse tipo de benefício?

Em alguns lugares, como no Canadá e em alguns estados dos Estados Unidos, a política de regulação foi feita pensando nisso. Em diminuir a população prisional, em anular os antecedentes criminais dessas pessoas. Em alguns casos, inclusive, exige-se que alguém egresso da prisão, alguém que já foi condenado por tráfico,  seja sócio de empresas que vendem maconha para uso adulto. A ideia é garantir a reparação histórica, a justiça social. Em outros lugares, a tributação com a venda de produtos à base de maconha reverte em favor das populações vulnerabilizadas, em forma de políticas habitacionais ou outras formas de beneficiar essas populações que foram prioritariamente prejudicadas pela Guerra às Drogas. Há possibilidades de usar a regulação não só para tirar da ilegalidade, mas também para reparar injustiças praticadas em nome da Guerra das Drogas.

O Guia fala muito sobre a importância de não deixar esse mercado ser sequestrado por grandes players da indústria do tabaco ou de bebidas alcoólicas. Como evitar que isso aconteça?

Acho que um dos modelos que a gente pode usar para discutir a regulação da cannabis são os erros cometidos na regulação do álcool, do tabaco e dos fármacos, em que houve a captura corporativa desses modelos regulatórios. Os interesses financeiros de grandes corporações se sobrepuseram a outros interesses, como o interesse da proteção da saúde pública. O que o Guia sugere é que as regras sejam bastante rígidas, especialmente no começo, porque a gente sabe que se não houver uma regulação adequada no começo, dificilmente a gente vai conseguir corrigir ao longo do processo. É o que mostram as experiências do álcool, do tabaco e dos fármacos. Porque justamente o poder financeiro dessas grandes corporações acaba impedindo que essas mudanças aconteçam. 

 

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