Direitos Humanos: o que é o PNDH, e por que ativistas temem revisão do governo
Grupo de trabalho nomeado por Damares revisará políticas para direitos humanos. Entidades temem mudanças no PNDH-3, documento que orienta prioridades e ações para o setor
Rafael Ciscati
12 min
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O auditório principal do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, é uma sala ampla, de paredes pretas e pontilhada por centenas de cadeiras azuis. Grande o bastante para acomodar até 3 mil pessoas sentadas. Naquela manhã de dezembro de 2008, Sandra Carvalho lembra de ter lançado um olhar satisfeito para o cômodo, já apinhado de gente. Nos meses anteriores, Sandra (que coordena a ONG carioca Justiça Global) se empenhara na organização do 11o Congresso Nacional de Direitos Humanos. O evento reuniu mais de 2 mil pessoas, de todos os estados brasileiros. Era a última — e a maior — de uma série de 137 reuniões que, ao longo do ano, haviam discutido que rumos o Brasil deveria tomar para proteger e promover direitos fundamentais. A Conferência Nacional, que começava naquele dia 15, lançaria as bases para a formulação do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3): um documento com diretrizes, prazos e metas, destinado a orientar a política nacional para o setor.
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Na sala superpovoada, as discussões seguiram acaloradas pelos quatro dias de conferência. “Havia representantes do governo e de diversas organizações sociais. O PNDH-3 conseguiu reunir uma diversidade muito grande de segmentos”, lembra Sandra. Estiveram presentes organizações do movimento negro, grupos que advogavam em favor dos direitos dos idosos, organizações quilombolas, de ciganos e ribeirinhos. “Essa pluralidade foi fundamental. Permitiu a inclusão de temáticas que não podiam ser negligenciadas no desenho de políticas públicas”. O PNDH-3 seria lançado um ano depois, por meio de um decreto presidencial, em dezembro de 2009.
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Passados mais de dez anos, foi com indignação — mas sem muita surpresa — que Sandra soube dos planos do governo Bolsonaro de revisar a política nacional de direitos humanos. A intenção foi anunciada no Diário Oficial da União do último dia 10 de fevereiro. A portaria 457, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH), informava a criação de um grupo de trabalho destinado a “análise ex ante da Política Nacional de Direitos Humanos”, com o objetivo de “oferecer recomendações para seu aprimoramento e de seus programas”.
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De acordo com o documento, assinado pela ministra Damares Alves, o trabalho ficará a cargo de 14 pessoas. Todas elas, funcionárias do ministério e nomeadas por Damares. Membros da sociedade civil e outros especialistas poderão participar do debate, mas mediante convite e sem direito a voto. A pasta prevê que o trabalho, feito a portas fechadas, será concluído em novembro. Até lá, as informações trocadas pelo grupo não poderão ser divulgadas.
A medida provocou reação imediata. Já no dia seguinte, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) publicou nota se opondo à criação do grupo de trabalho. Segundo o conselho, causava surpresa a composição do grupo, que excluía “a sociedade de um debate fundamental, de interesse de todas as pessoas.”
Para o colegiado, que reúne representantes de organizações sociais e do próprio governo, soa estranha a criação de um fórum restrito para travar uma discussão que costuma ser conduzida no próprio CNDH. E preocupa a exclusão da participação popular: “ É saudável que definições de políticas sejam revisitadas. Porque a conjuntura muda, e mudam as urgências”, diz Mônica Alkmin, coordenadora da Comissão de Participação Social do CNDH. “Mas é preciso que isso seja feito de uma forma democrática.”
A portaria foi ainda rechaçada por organizações da sociedade civil de todo o país. No dia 12 de fevereiro, mais de 200 delas assinaram uma nota de repúdio, pedindo a revogação da portaria. Hoje, o grupo reúne 578 ONGs e coletivos. Na tarde de quinta-feira (18), durante um evento virtual, a nota foi entregue ao deputado federal Marcelo Ramos (PL- AM), primeiro presidente da Câmara.
O grupo teme que a proposta do governo, de reavaliação de políticas, resulte numa guinada conservadora do PNDH-3 — o documento que traduz, em metas e ações, o olhar do país para os direitos humanos. “A portaria do ministério não diz isso explicitamente. Mas o PNDH-3 é um dos principais instrumentos da política nacional de direitos humanos. E está claro, para nós, que o governo quer alterá-lo”, afirma Paulo Carbonari, do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). “É esse o desejo dos membros desse governo desde que o PNDH-3 foi sancionado, há mais de dez anos”.
Lançado já no final do governo Lula, o PNDH-3 é frequentemente associado ao legado dos anos do PT na presidência. À época de sua promulgação, o programa foi criticado por personalidades e políticos ligados à bancada evangélica do congresso, a grupos católicos conservadores, ao exército e ao agronegócio. Foi alvo de críticas, inclusive, do então deputado Jair Bolsonaro. Em 2014, Bolsonaro publicou um artigo no portal UOL afirmando que o governo petista levaria o país a um “estado de exceção”. Na avaliação dele, o PNDH-3 era um dos instrumentos empregados nessa escalada autoritária, responsável por “ desconstruir, e na tenra idade, a heteronormatividade”.
O governo nega. Em uma nota, enviada a jornalistas, o MDH afirma querer conduzir uma discussão ampla sobre as políticas para os direitos humanos, sem um foco preferencial: “É importante destacar que o trabalho a ser realizado é de avaliação das políticas de direitos humanos, não do PNDH-3 especificamente, e segue as boas práticas de governança pública, conforme disposto no decreto 9.203, de 2017”. Questionada por Brasil de Direitos quanto a se o PNDH-3 entraria na pauta de debates, a pasta não respondeu. Apenas reencaminhou a nota já divulgada.
Nas redes sociais, a ministra Damares Alves foi menos diplomática: “Perderam as eleições, não perceberam? Bolsonaro é o presidente. Esse é o projeto vencedor nas eleições de 2018. É a vontade do povo”, escreveu num tweet, ao responder críticas quanto à criação do grupo ministerial. Na mesma sequência de mensagens, a ministra acrescentou que “haverá participação da sociedade civil nos debates. E serão representantes de TODOS os segmentos, não somente das entidades de esquerda, como no PNDH3. Os direitos humanos são universais, são para todos.”
Para as pessoas que participaram da elaboração do programa, e da Conferência Nacional de Direitos Humanos de 2008 — responsável pela gestação do documento — é evidente (e prejudicial) a diferença entre o processo conduzido à época e o grupo de trabalho proposto hoje. “Essa restrição ao debate é típica de governos autoritários”, afirma Carbonari.
Mas, afinal, por que o PNDH-3 importa tanto?
O que é o Programa Nacional de Direitos Humanos
A ideia de criar um documento que reunisse diretrizes e metas para as políticas de direitos humanos foi proposta, pela primeira vez, em 1993. Era uma recomendação da II Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada naquele ano em Viena, na Áustria, e da qual o Brasil participara. O documento viria à luz três anos depois, em 1996, já no governo de Fernando Henrique Cardoso. No prefácio, afirmava que a existência de um programa nacional assinalava um compromisso da sociedade brasileira “em promover uma democracia verdadeira”. Segundo o texto, “o Governo tem um compromisso real com a promoção dos direitos humanos”.
O momento parecia propício. O Brasil acabara de passar por uma sequência de anos convulsos: ao fim da ditadura militar, seguira-se um impeachment. “Mas, em 1996, a economia brasileira se estabilizava, e era possível ao governo tratar de direitos humanos” afirma Thomaz D’Addio, especialista em gestão de políticas públicas. Em 2016, D’Addio apresentou uma dissertação de mestrado em que analisava o processo de formulação do PNDH-3. Na avaliação dele, o primeiro PNDH avançava nos princípios declarados na Constituição de 1988. E pretendia mostrar ao mundo que o Brasil era, enfim, uma democracia sólida. “Era importante, para o país, se projetar no cenário internacional como uma democracia que respeitava os direitos humanos”. Era, também, uma pauta cara às pessoas que compunham o governo de então.
A elaboração do primeiro PNDH envolveu a participação de 334 participantes, seis conferências regionais, “consultas por telefone e fax”. Estabelecia objetivos de curto, médio e longo prazo, mas sem citar responsáveis pelas ações. E privilegiava direitos políticos e econômicos. O documento não ficou imune à críticas, mas foi considerado um avanço importante: “O PNDH fixava um parâmetro”, diz Paulo Cabonari, do MNDH, que participou ativamente da construção do programa. “Tínhamos claro que aquele era o mínimo. Qualquer coisa menos que aquilo passou a ser inaceitável.”
Ao programa de 1996, seguiram-se duas reformulações. Cada nova versão refletia, a seu modo, a maneira como a sociedade brasileira tratava o respeito a direitos fundamentais. O amadurecimento da pauta, e sua valorização, foram marcados pela trajetória da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. A secretaria foi criada em 1997, como um dos resultados do primeiro PNDH, e era subordinada ao ministério da Justiça. Em 1999, ganhou assento das reuniões ministeriais e, em 2003, tornou-se a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), com status de ministério.
Cada nova versão do PNDH trazia, ainda, ligeiras alterações na natureza do documento: “A primeira versão é uma carta de intenções. Já o PNDH-3 é um programa de ação, com metas, prazos e a definição de responsáveis por cada ação programática”, afirma D’Addio.
As reações ao PNDH-3
O PNDH-3 foi, ainda, um marco em termos de participação popular. Estima-se que 14 mil pessoas se envolveram na discussão. O resultado foi um documento que avançava em questões sociais sensíveis. Falava, por exemplo, em apoio à descriminalização do aborto. E em “desenvolver mecanismo para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União”. Falava, ainda, em criar uma Comissão Nacional da Verdade, para analisar os crimes cometidos durante a ditadura militar.
A reação contrária foi virulenta. O documento foi assinado por todos os ministérios mas, segundo relatos, deixou desconfortável o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Jobim temia a reação dos militares à Comissão da Verdade. “A partir daí, ele se articulou com outros atores que também não se sentiam confortáveis com o programa”, conta D’Addio. Era o caso de grupos religiosos e do agronegócio. A senadora Kátia Abreu, então presidente da Associação de Agricultura e Pecuária do Brasil , chamou de “preconceituoso” o tratamento legado pelo programa ao agronegócio: “saem a democracia, a justiça, a tolerância e o consenso e entra a velha visão esquerdista e ideológica que a humanidade enterrou sem lágrimas nas últimas décadas, depois de muito sofrimento e muita miséria”, escreveu, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo. Já o jurista Ives Gandra afirmou que, com o PNDH-3, o governo pretendia eliminar a oposição, à moda do que fizera o governo Venezuelano.
Os ataques forçaram o governo, em ano de eleição, a recuar. Em maio de 2010, foi publicada uma nova versão do programa, mais tímida. Em lugar de descriminalizar o aborto, por exemplo, o novo texto baixava o tom, para dizer que o governo deveria considerar o aborto um tema de saúde pública, “com a garantia dos acesso aos serviços de saúde”.
A avaliação é de que, nos anos seguintes, o governo titubeou na implementação do programa. “A partir dali, o PNDH-3 perdeu fôlego político”, afirma Carbonari.
Projeto de decreto legislativo cobra extinção do grupo de trabalho ministerial
Apesar das alterações que sofreu, o PNDH-3 é visto como o resultado positivo de discussões amplas entre diferentes setores. “O PNDH-3 representa um marco de pactuação no país pós Constituição”, avalia Carbonari.
Na opinião de D’Addio, a criação de um grupo restrito para reavaliar o Programa pode não resultar, necessariamente, em um documento ruim. “Nos PNDH 2 e 3, a participação popular serviu de base ao programa. Mas a palavra e a forma finais foram dadas por técnicos do governo. Nem tudo o que estava nas conferências aparece no decreto”, pondera ele. Mesmo assim, a ausência de participação popular traz prejuízos em potencial. “Com participação ampla, o programa tem maiores chances de refletir os anseios da sociedade”.
A proposta do MDH de revisar a política à portas fechadas aprofundou um desgaste que se amplia já há dois anos entre a ministra Damares e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Segundo Sandra Carvalho, que foi conselheira até o final do ano passado, houve repetidas tentativas de interferência do ministério no CNDH, um órgão independente. Historicamente, a secretaria-executiva do colegiado é ocupada por um servidor de carreira, aprovado pelos plenário do Conselho. Entre 2019 e o fim de 2020, a ministra nomeou nomes de sua confiança para ocupar o cargo, contrariando os demais membros do CNDH. “O Conselho é um órgão de Estado, e não de governo. Ele deve ter preservada sua autonomia”, afirma Sandra.
Na tarde de quinta-feira (18), quando entregaram à Câmara dos Deputados sua carta de repúdio, as quase 600 entidades e organizações da sociedade civil brasileira cobraram, também, a aprovação do decreto legislativo 16/2021. De autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), o decreto susta os efeitos da portaria do MDH que criou o grupo de trabalho ministerial. “Se o governo quer discutir políticas públicas, faremos isso com participação popular”, diz Mônica Alkmin, conselheira do CNDH. “Não queremos um assento nesse grupo de trabalho. Queremos que ele seja desfeito.”
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