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Projeto usa religiosidade para levar consciência climática a espaços de fé

‘Fé no Clima’, iniciativa do Instituto de Estudos da Religião (ISER), reúne pessoas de diversas matrizes religiosas para debater mudanças climáticas a partir de diferentes crenças

Bárbara Diamante *

10 min

Imagem de topo: Tiago Santos (à esquerda, de azul) e Paulo Sampaio (ao centro, de branco) durante a vigília em Porto Alegre. / Foto por: Poliana Einsfeld (Coletivo Abrigo)

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Imagem de topo: Tiago Santos (à esquerda, de azul) e Paulo Sampaio (ao centro, de branco) durante a vigília em Porto Alegre. / Foto por: Poliana Einsfeld (Coletivo Abrigo)

Na tarde do dia 17 de maio de 2025, mais de 200 pessoas de diferentes religiões se reuniram na orla do lago Guaíba, principal corpo d’água do Rio Grande do Sul. Era o começo da Vigília pela Terra. Tal qual qualquer vigília religiosa, a programação daquele fim de tarde incluía uma sequência de orações. Diferentemente da maioria das vigílias, no entanto, uma parte significativa do encontro seria dedicada a discutir um tema que raramente figura em cerimônias religiosas, apesar de interferir na vida de todo mundo: a crise climática e os impactos que ela causa no dia a dia das pessoas.

O evento é obra do Instituto de Estudos da Religião (ISER), uma organização da sociedade civil que, há mais de 30 anos, convida grupos religiosos a discutir temas como democracia, justiça social e clima. Em 1992, quando o Rio de Janeiro sediou a primeira conferência das Nações Unidas sobre clima, a Eco-92, o Iser fez algo parecido: organizou uma vigília inter-religiosa batizada de ‘Um Novo Dia para a Terra’. Dessa vez, o objetivo é realizar uma sequência de vigílias em diferentes estados do país. Os eventos devem se estender até novembro, quando acontece a COP 30 em Belém, no Pará.

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A passagem por Porto Alegre é a etapa inicial de um trajeto que passa por Rio de Janeiro, Manaus, Recife, Natal e Belém. O plano é fomentar o debate climático ao redor do país. A ação faz parte do projeto Fé no Clima, criado pelo ISER há quase 10 anos, e que utiliza a religiosidade em prol da justiça climática.

Um ano atrás, um encontro dessa magnitude, com duas centenas de participantes, não seria possível. Em maio de 2024, fortes enchentes atingiram o Rio Grande do Sul e o local da cerimônia ficou submerso. Dessa vez, porém, fez sol.

Paulo Sampaio, articulador do projeto inter-religioso, participou de todo o processo de planejamento. A pedido das lideranças religiosas locais, antecipou a data do encontro, que antes estava previsto para o segundo semestre de 2025. O marco de um ano das inundações era algo simbólico, por isso, era importante realizar a vigília de Porto Alegre em maio.

Estava alegre por conseguir reunir tantas pessoas de diferentes religiões em pouco tempo. À mesma medida, sentia uma “raiva profética”. Quando boa parte de Porto Alegre ficou submersa, lembra, as populações mais vulneráveis, que viviam em bairros mais pobres, receberam menos assistência. Lembrar dos danos causados pelas chuvas — e pela negligência — lhe causava indignação.

Tiago Santos, teólogo e diretor executivo do Coletivo Abrigo, compareceu a convite dos organizadores e também foi marcado por sentimentos mistos. O momento foi doloroso, disse, e trouxe memórias da tragédia vivenciada há pouco. Mas também foi essencial para superar o trauma e “fazer as pazes” com o ambiente.

O grupo encerrou o dia diante do pôr do sol cantando a Canção da América, de Milton Nascimento. A música fala sobre laços afetivos que resistem ao tempo, como aqueles que foram estabelecidos durante a tragédia. Ao fim da melodia, os participantes depositaram pétalas de rosas no rio, em homenagem às vítimas e aos voluntários que arriscaram a própria vida para ajudar ao próximo.

Momento em que homenagearam afetados pelas enchentes de 2024, às margens do Guaíba. / Foto por: Poliana Einsfeld (Coletivo Abrigo)

Momento em que homenagearam afetados pelas enchentes de 2024, às margens do Guaíba. / Foto por: Poliana Einsfeld (Coletivo Abrigo)

 

A iniciativa Fé no Clima

O Instituto de Estudos da Religião (ISER) é uma instituição laica fundada em 1970, mas parte da premissa de que a religião é essencial para gerar mudanças sociais. Trabalha em dois eixos principais: Religião e Espaço Público e Direitos e Sistema de Justiça

O envolvimento do grupo nas discussões climáticas começou no ano de 1992, quando aconteceu a Eco-92. O evento, organizado pela ONU, ficou conhecido como Cúpula da Terra e reuniu mais de 100 chefes de Estado. Durante duas semanas, os representantes dos países debateram formas de desenvolvimento sustentável. O principal resultado das discussões foi a construção de um plano de ação chamado Agenda 21, que estabeleceu compromissos para o século XXI. Uma das metas era atingir a justiça social

Nos anos seguintes, o instituto continuou a participar de eventos sobre clima, como o Rio+20, em 2012. O projeto Fé no Clima tomou forma em 2015, com o intuito de levar as pautas ambientais, que ganhavam cada vez mais visibilidade, para a realidade das pessoas de fora do nicho científico. 

 

Em maio daquele ano, foi publicada a encíclica Laudato si’ (em português: Louvado Sejas) do Papa Francisco. No documento, o pontífice reflete sobre como as ações humanas afetam o meio ambiente. Conclui que, para a sociedade não se afundar na destruição, é necessário adotar um estilo de vida menos consumista. Pensando nessa questão, lideranças religiosas se reuniram no Rio de Janeiro em 25 de agosto de 2015 e debateram o tema no Encontro Internacional Fé no Clima. Participaram 12 lideranças- a maior parte do Brasil, mas alguns vinham de longe: houve participações dos Estados Unidos, do Peru e da Nigéria. Ao final da discussão, redigiram uma declaração para oficializar as percepções e compromissos estabelecidos ali.

Foi a partir dessa reunião que surgiu a ideia de unir, com maior frequência, pessoas de diferentes religiões com um mesmo propósito: cuidar da Casa Comum. Em várias crenças, é esse o termo utilizado para se referir ao planeta Terra.

 

Lideranças de diferentes espectros se reuniram no Encontro Internacional Fé no Clima. O evento foi o marco do início do projeto. (Imagem: Reprodução / Fé no Clima)

Lideranças de diferentes espectros se reuniram no Encontro Internacional Fé no Clima. O evento foi o marco do início do projeto. (Imagem: Reprodução / Fé no Clima)

Participação do Fé no Clima na COP25, em 2019. (Imagem: Reprodução / Fé no Clima)

Participação do Fé no Clima na COP25, em 2019. (Imagem: Reprodução / Fé no Clima)

 

O projeto ganhou força e alcançou eventos globais a partir de 2018, quando seus membros participaram da 13.ª reunião de cúpula do G20, em Buenos Aires. Frequentaram outras conferências voltadas ao clima ao decorrer dos anos seguintes, inclusive como parte do Pavilhão da Fé, inaugurado na COP28 (2023). 

Ao longo de quase 10 anos, o Fé no Clima também produziu guias e o podcast Casa de Muitas Janelas, citando modos de cuidar do planeta, segundo diferentes fés. 

Lançou, inclusive, um documentário em 2023. O filme mostra como jovens de todo o Brasil encontraram maneiras de enfrentar a crise climática por meio da espiritualidade. Paulo Sampaio, o articulador da vigília em Porto Alegre, foi uma das pessoas entrevistadas. Na época, ele era membro da Rede de Juventudes, um braço do Fé no clima focado nas pessoas entre 18 e 35 anos.

 

Mas por que discutir clima sob a perspectiva religiosa? 

Para pessoas que não têm costume de frequentar espaços de fé, a junção entre religião e meio ambiente pode parecer pouco intuitiva, mas para Tiago Santos  e Paulo Sampaio, duas das pessoas de fé que participaram da vigília às margens do Guaíba, religião e clima tem tudo a ver.

Santos é cristão e acredita que “todas as coisas foram criadas por Deus e destruir a Terra é o equivalente a destruir algo sagrado”. Preservar o meio ambiente e cuidar das pessoas que habitam o planeta são maneiras de proteger a Casa Comum. 

Sampaio foi criado no cristianismo e hoje também frequenta terreiros de candomblé e Jurema Sagrada – uma crença afro-indígena, segundo a qual os elementos naturais são considerados sagrados. O próprio nome “Jurema Sagrada” faz referência a uma árvore, frequentemente utilizada como meio de conectar o ser humano com o mundo espiritual. Essa relação de conexão com a natureza, também é observada em outras religiões, como o islã e o budismo.

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Moema Salgado, membro da gestão do ISER, explica que a religiosidade é um elemento incontornável para entender a sociedade brasileira. “A religião está em todos os espaços, desde a cultura até a política, a gente queira ou não”. Sharah Luciano, coordenadora de formações da iniciativa Fé no Clima, complementa citando o motivo de criar um projeto que junta fé e o cuidado com a natureza. “O meio ambiente é um ponto de união entre as religiões e torna possível construir pontes e estabelecer diálogos”

Além de manter contato com as lideranças religiosas, o projeto procura fazer encontros anuais que envolvam cientistas ou ambientalistas, para ampliar ainda mais os debates.

Reunir pessoas com saberes distintos é uma maneira de pensar em diferentes – e mais amplas – soluções para combater as mudanças climáticas. As lideranças religiosas são ótimas comunicadoras e conseguem levar temas socioambientais para dentro das comunidades de forma mais palpável. Discutir essas temáticas em espaços de fé significa dar sentido às questões que antes eram discutidas somente em âmbitos científicos e, assim, atingir uma camada maior da população. 

 

Porém, nem sempre os ambientes religiosos são vistos como lugares acolhedores. Santos já passou por locais assim. Atuou como pastor batista durante 9 anos, mas sentia que as pautas trabalhadas no espaço em que atuava não tinham nada a dizer sobre o que acontecia fora da igreja. Mesmo assim, buscava incluir temas sociais nos sermões. A atitude resultou em um silêncio obsequioso, uma espécie de punição àqueles que se desviam da doutrina da igreja. “Fui proibido de ter redes sociais, dar palestras e, até mesmo, de pregar onde era pastor. Minha vocação de acolher estava sendo mutilada”. Em 2014, ele acabou rompendo o vínculo com a instituição. 

Ainda assim, não queria deixar de lado aquilo que entendia como um chamamento divino. Logo percebeu que era possível unir a fé com as causas sociais que defendia. Se juntou a grupos que discutiam temas relevantes para a sociedade, como a preservação do meio ambiente, e tinham uma “cara mais ecumênica”. Locais ecumênicos são espaços que estabelecem diálogo entre diferentes aspectos religiosos. O Fé no Clima é um desses projetos com o qual Santos se identificou. 

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Paulo Sampaio, o articulador da vigília de Porto Alegre, percebe que ainda existe uma desconfiança inicial quando integrantes do Fé no Clima adentram certos espaços, como conferências. Desconfiança essa que muitas vezes vem acompanhada de intolerância. Mas nota que o espanto tem diminuído e frequentemente a iniciativa desperta curiosidade daqueles que ainda não a conhecem. 

Aos poucos, pessoas – inclusive aquelas que se consideram ativistas – compreendem a relação entre religiosidade e clima. Para ele, a fé pode potencializar o ativismo e fomentar soluções mais complexas, vindas de diversas áreas da sociedade. “A agenda climática é uma pauta para todos os atores sociais, inclusive as comunidades de fé”.

*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati

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